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Walter Benjamin em Moscou

Humanista íntegro e heterodoxo, autor de uma obra referencial de grande alcance intelectual, vítima do nazismo.

*Carlos Russo Jr

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A Revolução Soviética acontecera a menos de dez anos. Apenas há cinco, terminara a terrível guerra civil que envolvera o povo russo.

A visita de Benjamin durou de dezembro de 1926 a fevereiro de 1927, e fora, logicamente, repleta de expectativas pessoais, filosóficas, políticas e literárias. Afinal, Benjamin queria conhecer a “Pátria do Socialismo” por dentro e de perto.

Vamos a alguns de seus relatos:

1. Moscou invernal é uma cidade silenciosa. A enorme movimentação de suas ruas, onde mal se consegue caminhar sem empurrar ou encolher-se, é silenciosa. Ao contrário de Berlim, em Moscou existem poucos automóveis que são usados somente em matrimônios, falecimentos e pela apressada administração pública. Abundam, em compensação, os cavaleiros e os trenós. Com tudo isto, a grande cidade é rigorosamente limpa!

2. A variedade do comércio ambulante o impressionou. As mercadorias irrompem por todas as partes das casas, penduradas em cercas, e no calçamento. A cada cinquenta metros, vendedoras de doces, cigarros, frutas. Outros ainda com cestos cheios de brinquedos de madeira, carrinhos e pás, todos amarelos ou vermelhos, muito bem feitos, sólidos, de clara origem camponesa. Artigos de primeira necessidade, roupas íntimas, tudo se vende e compra, recordando uma cidade como Nápoles. Mas aqui, em plena rua abaixo dos 25 graus negativos!

3. Vendem-se bolos ainda quentes, rodelas de linguiças fritas, mas tudo em silêncio! Em Moscou, ao contrário de Nápoles, não se grita. As pessoas se dirigem aos transeuntes com palavras sóbrias, senão sussurradas, nas quais existe a humildade do pedinte. Talvez pelo fato de que o comércio ambulante fosse em parte ilegal, evitava-se qualquer sensacionalismo.

4. No panorama das ruas de todos os bairros proletários as crianças são muito importantes. Elas são mais numerosas que o usual, se deslocam convictas de seu destino e são muito ocupadas. Entre as mesmas existe uma hierarquia comunista. Os konzomoltses, por serem mais velhos, estão no topo. Têm seus clubes e são a verdadeira descendência instruída do Partido. Os menores, lá pelos seis anos, são os pioneiros. Também se reúnem em clubes, usam gravatas vermelhas com o emblema “somos de outubro”, e, finalmente, os lobos, crianças pequenas que já aprenderam discernir até mesmo qual é a figura de Lênin.

5. Além dessas crianças, existem os besprizornie, decaídos e tristes, desconfiados e amargurados, os sem nome. Durante o dia são vistos solitários, na própria guerra pela sobrevivência. À noite se reúnem em bandos e aos turistas se recomenda se precaver de encontra-los. O Estado instala por toda parte áreas de reeducação infantil e nomeia educadoras para que se aproximem dos garotos e organizem distribuição de alimentos e jogos. Métodos pedagógicos tradicionais não poderiam dar certo com essas crianças. É necessário que a instrutora se ligue às senhas da rua e quando o consegue, a área sob sua responsabilidade pode chegar a congregar até 200 crianças! E como o orgulho do proletariado se faz sentir com cada besprizornie agrupado a uma coletividade!

6. Numa ronda de estudos por museus moscovitas nada surpreende mais agradavelmente que observar como nessas salas, em grupos, muitas vezes com guias, crianças, jovens e operários se movem com toda naturalidade. Na Rússia, na realidade, o proletariado começou a se apossar da arte burguesa, a adorá-la. Ademais de Museus de Arte, existe o Politécnico e o do Brinquedo. “Como sabiamente diz Proust, a educação não é fomentada exatamente por obras-primas”.

7. A mendicância aqui não é agressiva como na Europa meridional. Existe como que uma corporação de moribundos. As esquinas de muitos bairros estão tomadas por embrulhos de fardos, camas ao ar livre. Longos discursos suplicantes acompanham os transeuntes. Moscou seria preciso conhecê-la como a conhecem estes mendigos! Sabem de que lado de uma loja lhes é permitido se aquecerem por dez minutos, sabem onde e quando irem buscar pães e onde existem abrigos com vagas para se amontoarem. Com centenas de esquemas e variantes, os mendigos aqui transformaram a mendicância numa arte. Acontece que na União Soviética a mendicância perdeu seu fundamento mais forte: a má consciência social, que, mais que a compaixão, abre os bolsos e as esmolas são muito raras.

8. Existe uma vontade inexaurível de experimentar. Poucas coisas definem a URSS com mais vigor. Ocorre um estado de mobilização incondicional. Dia e noite o País está mobilizado e, à frente de tudo, o Partido. Por exemplo, o atual diretor do Teatro da Revolução foi outrora General; mas antes de se tornar um comandante vitorioso, fora crítico literário! Outro caso, o porteiro do hotel em que Walter se hospedara: até 1924 estivera no Kremlin, quando fora acometido de forte dor ciática. O Partido enviou-o à Crimeia para repouso e aos melhores médicos. Ao retornar, necessitava de uma posição aquecida e que não demandasse muitos movimentos. Enviaram-no como porteiro do hotel, e se melhorasse, retornaria ao Kremlin.

9. Oposição como se define no Ocidente já não existe. Ou ela contraiu algum compromisso com os bolcheviques ou foi exterminada. Fora do Partido já não se admite política!

10. O bolchevismo aboliu a vida privada. A natureza dos serviços públicos, a atividade política, sindical, coletiva, e a imprensa são tão poderosas que não sobra tempo para interesses que não confluam com elas. Tão pouco espaço. Casas com seus cinco a oito cômodos que antes abrigavam uma família, abrigam sete, oito famílias inteiras. De dentro de casa as pessoas suportam a existência, pois devido ao seu estilo de vida, alhearam-se a ela. Seu tempo fora do trabalho é o clube, a rua, as reuniões.

11. Os dias dos moscovitas são repletos de atividades. Reuniões e comissões são marcadas a todas as horas nas fábricas, nos clubes, como se o conjunto social as esboçasse, planejasse e convocasse.

12. Pela moradia paga-se de acordo com o salário. Toda a propriedade é estatizada. Quem pode pagar 1 rublo por mês; os mais abastados, até 60.

13. O trabalhador sindicalizado tem toda a cobertura possível para assuntos de saúde sem gastar um centavo. Já o não sindicalizado pode ir mendigar e se degenerar na miséria se, como membro da dita nova pequena burguesia (fruto da N.P.E.), não estiver em condições de pagar até milhares de rubros por tratamentos mais sofisticados.

14. “Tempo é dinheiro”, esta frase é atribuída a Lênin e ela é absolutamente genial, pois o espírito dos russos é dispersivo, perdem tempo com tudo, discutem por tudo. A unidade de tempo perante qualquer pedido é “imediatamente”. Acontece que o imediato aqui nada significa, pois geralmente nada acontece. O raro de ouvir-se é um “não”, o que não significa que o solicitado seja possível. As coisas terminam indeferidas por decurso de prazo.

15. Sob o capitalismo, poder e dinheiro são grandezas mensuráveis. Qualquer quantidade de dinheiro pode ser convertida numa quantidade mensurável de poder. Nesse sentido só se pode falar em corrupção quando esse fenômeno se torna excessivamente manuseado. O Estado soviético interrompeu esta comunicação entre dinheiro e poder. O Partido reserva o poder todo para si.

16. Aos membros do Partido Comunista assegura-se o mínimo dos mínimos para a existência, e fixa para os escalões mais altos um máximo 250 rublos mensais. Acima disto, somente com uma atividade extra além do horário de trabalho, por exemplo, a literária.

17. Neste sentido, a Rússia de hoje não é um Estado de classes, mas de castas. O valor do cidadão é definido exclusivamente pela sua relação com o Partido. Para aqueles não filiados, desde que não reneguem o Partido, abrem-se alternativas laborais. Mas um homem da N.E.P. (um trabalhador autônomo ou dono de pequeno negócio), este é condenado ao ostracismo social.

18. Todos os russos se unem na edificação do trabalho nacional. Uma vida isolada de eventos, mas repleta de perspectivas, todos buscam fatias de poder. “Se um dia, a correlação dinheiro e poder voltar a se implantar na Rússia, tudo estará perdido, o Estado ruirá e ficará nas mãos daqueles que saberão realizar o câmbio negro do poder”.

19. O Partido se propõe equacionar o nível de consumo do povo russo ao de toda a Europa. Conseguirá? Este será o seu inconteste certificado de vitória.

20. Existem milhões e milhões de analfabetos e sobre eles deve se assentar uma educação genérica. Esta a missão essencial! Já a educação superior pré-revolucionária era europeia; e essas características europeias e nacionais da educação elementar buscam seu ajuste. No setor tecnológico, apesar dos desvios dos primeiros anos, é de se supor que o sucesso estará garantido no futuro.

21. Com relação à produção artística, é o conteúdo e não a forma que decide se ela vem a ser “revolucionária ou contrarrevolucionária”. O intelectual é, antes de tudo, um funcionário. Trabalha no Departamento de Censura, de Justiça, de Finanças. Quando não cai em decadência, é um sócio do trabalho, o que na Rússia significa sócio do poder. Um membro da casta dominante. A associação mais avançada é a União Geral dos Escritores Proletários.

22. Quem entra pela primeira vez numa sala de aula russa fica paralisado pela surpresa. As paredes estão tomadas por quadros, desenhos, modelos de papelão, onde as crianças depositam seus trabalhos para a comunidade. O tom vermelho prevalece e os trabalhos são impregnados pela foice e o martelo e por cabeças de Lênin. O mesmo se pode ver em clubes, empresas, sindicatos, na medida em que também para os adultos são esquemas de manifestação coletiva. Cada um dos chamados cantos de Lênin tem seu jornal mural. A ingênua alegria é uma constante e a ela se misturam exortações e propostas de melhorias dos serviços públicos.

23. São comuns os debates pedagógicos na formatação de “debates judiciais”. Juntam-se entre 200 a 300 pessoas numa sala forrada de vermelho e no palco um busto de Lênin sobre um pedestal. No cenário, figuras de operários e camponeses sublimam a união do campo com a cidade. No palco três mesas. Numa um juiz, noutra um promotor e na outra, um defensor. De costas para o público a ré acusada, toda de preto. A encenação julgará um caso de uma camponesa acusada de curandeirismo com desenlace fatal, uma intervenção errada na hora do parto. O perito da o seu laudo: responsável pelo falecimento da parturiente; o defensor apela por não ter havido má fé e no interior do país há falta de instrução e higiene. O promotor pede a pena de morte. No estrado surge um konsomol que exige castigo sem complacência. O tribunal se retira e ao final a acusada é condenada a apenas 2 anos de prisão. O juiz esclarece que é necessário estabelecer em todo o interior da União Soviética centros de higiene e instrução. O efeito destas sessões é excepcional! Não pode haver meio mais eficaz para mobilizar o público para questões da moral bolchevique segundo a ótica do Partido!

24. Todos os dias alguma festa é organizada nos diferentes bairros da cidade. Além disso, Moscou é cheia de restaurantes e teatros. Sentinelas com guloseimas patrulham as ruas, muitas lojas de gêneros alimentícios só fecham à meia noite e nas esquinas se abrem salões de chá e cervejarias. Em certas tabernas pode-se além de comer, alegrarem-se com músicas folclóricas ao som de cantos, violinos e acordeões.

25. Hoje é aniversário da morte de Lênin. A maioria das pessoas carrega uma tarja preta no braço. Para os bolcheviques, o luto por Lênin é também um luto por um tempo heroico, um luto pelo comunismo de guerra. Por todos os lados encontra-se com o retrato do líder, mas o mais frequentemente exibido é o de Lênin à mesa, inclinado sobre um exemplar do Pravda, representando a tensão dialética de sua existência: o olhar voltado para a distância, mas a incansável preocupação com o momento.

26. Nesses tempos se explica a cada comunista que o trabalho revolucionário agora não é mais a luta, não é o fratricídio ou a guerra civil, mas a construção de canais, a construção de pontes, a eletrificação e construção de fábricas.

O culto da imagem e da figura de Lênin não lhe agradar a nem um pouco. “Parecia a substituição dos ícones religiosos da época czarista.”

Essas foram as impressões mais importantes da visita de Walter Benjamin à Moscou de 1926. Retornando à Alemanha, manteve-se próximo, mas jamais pediu sua filiação ao Partido Comunista Alemão. Manteve-se, entretanto, fortemente influenciado tanto pelo marxismo quanto pelo misticismo judaico. Era, antes de tudo, um humanista honesto e heterodoxo.