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Em fragmento de livro inédito Fundador de Navegos evoca a última vez em que conversou com o célebre poeta assuense Renato Caldas.

*Franklin Jorge

Cheguei a essa idade sem nunca, jamais, ter dado uma entrevista… E, durante toda a vida, conheci tantos jornalistas… Nem mesmo João Batista Machado, todo-poderoso no Diário de Natal, nascido e criado aqui, teve a lembrança de entrevistar-me ou de mandar entrevistar-me… Celso [da Silveira] nunca me deu cartaz…Você é o primeiro jornalista a entrevistar-me, afirma Renato Caldas, abanando-se com um jornal velho que se encontrava, talvez para essa serventia, diante de nós, sobre a mesinha de centro. E já tenho quase 90 janeiros…

Porém, nessa idade, já não tenho memória nem vontade de lembrar-me do passado. Nesse estágio da vida, o peso da lembrança chega a ser insuportável. Pensar na vida que podia ter sido… Meditar… Depois de tanta vida vivida, o melhor, mesmo, seria esquecer tudo… O passado é uma carga pesada. Pesadíssima, na verdade, para qualquer ser humano, mas, sobretudo, para nós, os velhos… E temos que carregá-lo, o passado, ainda assim, com os nossos achaques…

Renato recebe-me em sua casa, nessa hora que seria a da sua sesta, após o almoço. Está sem camisa, pois faz calor. O vento que sopra sobre a cidade parece saído das gargantas do inferno. Sentimo-nos abafados na sala exígua, excessivamente, talvez, mobiliada. Renato confessa. Depois que você foi embora, fiquei me lembrando dos meus companheiros, todos já falecidos, alguns famosíssimos em sua época, porém agora completamente esquecidos… completamente esquecidos, como em breve eu vou ficar… Quem se lembra de Damasceno Bezerra?, de Othoniel Menezes?,  de Evaristo de Souza?, de Diolindo Lima?, de Zé Areia…? Todos, enquanto vivos, homens célebres cujos nomes corriam de boca em boca.

O poeta fala numa voz trêmula, os olhos esbugalhados e fixos, frequentemente segurando-me pelos ombros. Conversamos numa pequena sala atulhada de móveis, em sua residência, à Praça Pedro Velho. O conjunto de sofás, em estilo funcional inspirado no Bauhaus alemão, a mesinha de centro com tampo espelhado e dois ou três armários envidraçados, repletos de bibelôs, colecionados por Dona Fausta, que, segundo Renato, gosta muito dessas miudezas. Parece-nos uma casa em miniatura onde não há nada fora do lugar, limpíssima.

Amedrontado com a ideia da morte, Renato esforça-se para mantê-la à distância, apesar de achar-se, como diz, “um samba acabado”. Hoje, sou um destroço do que fui. Vivo porque a vida dura… Pois, como ia dizendo, depois que nos despedimos, fiquei pensando nos meus velhos companheiros; agora vivos, apenas, em minha lembrança que já vai se esgarçando… se esgarçando… Daqui a pouco nem mesmo eu saberei deles.  Por isso, mandei chamá-lo; para que você lhes dê um túmulo de palavras… Afinal, do homem, só fica o que foi escrito a seu respeito ou o que ele escreveu. Nós temos a sorte ou a má sorte de escrever. De testemunhar.  Assim, algum dia, quando alguém folhear o seu jornal, saberá que eles existiram e foram grandes em seu tempo. Quero falar dos meus amigos já mortos, grandes vivos.

Lembrei-me de uns versos, que você pode anotar se achar que vale o esforço e o desperdício de tinta e papel. Alguns são atribuídos a outros autores, pois há muita pirataria nesse meio literário, mas muitos deles foram improvisados em minha presença, a maioria ao tempo em que tive um bar em Natal, a Maloca, frequentado por todos eles, exceção de Ferreira Itajubá, que já havia morrido e era o grande pai ou o grande irmão de todos os nossos poetas… Uma figura já mítica àquele tempo… Vou dizer-lhe apenas versos fesceninos, pois em geral o povo gosta de sacanagem. Quero que sua crônica seja lida e comentada, como convém ao mais completo sucesso.

Diolindo, ao regressar duma viagem que fizera não sei a que pretexto, assim me relatou o que viu na torre duma igreja.

 

Regressando de viagem

à velha e querida Assu,

vi o galo de Angicos

 pendurado pelo cu…

 

De Othoniel, que não era propriamente um fescenino, mas produziu alguma coisa nesse gênero, lembro-me que escreveu.

 

Diz Fonseca à terra inteira:

Não és tu, Deus, que governas.

É a aranha caranguejeira 

Que a mulher tem entre as pernas.

 

Itajubá, o nosso maior poeta sempre decantado pela boemia, é autor desses versos que me foram transmitidos por Barreto Sobrinho, seu grande amigo e companheiro de farras; sendo ele próprio, Barreto, um altíssimo poeta, hoje completamente esquecido e ignorado.

 

Quisera ser desta praia,

Apenas um aratu;

Debaixo de tua saia,

Olhando para o teu cu.

 

Evaristo de Souza, mais conhecido como músico, gostava de quadrinhas facetas. Certa vez, referindo-se a um casal que víamos sempre à janela, improvisou ao pé do balcão da Maloca.

 

Toda tarde ela e ele

Se encontravam na janela.

Ela pegando na dele.

Ele pegando na dela.

 

Damasceno, amigo de Cascudinho e um grande jornalista, ao sair do banheiro, após fazer as suas necessidades fisiológicas, relatou o que acontecera lá dentro

 

Puxei na ponta da alça,

O tolete estremeceu.

Fez alguns passos de valsa,

Cumprimentou-me e desceu.

 

João Celso Filho, nosso conterrâneo do Assu, é autor dessa quadrinha que não sendo fescenina me parece muito graciosa. Vale anotar…

 

O amor é ver o boi,

Que apanha, mas não se zanga.

Quanto mais apanha o boi,

Mais é amigo da canga.

 

Zé Areia, barbeiro e vendedor de loterias, passou desapercebido como poeta, mas chegou a escrever alguns versos dignos das melhores antologias. Era queridíssimo, os amigos sempre procurando uma maneira de ajudá-lo de alguma forma, chegaram a obter para ele durante a segunda guerra um emprego de barbeiro na Base Aérea, onde ele cortou o cabelo e fez a barba de muitos americanos. Mas, não gostava de trabalhar, não gostava da rotina do trabalho e voltou a vender loterias, de porta em porta, pelas ruas da cidade. Uma vez, estávamos na praia de Areia Preta, tomando umas e outras, ele mirou o céu enluarado e se saiu com estes versos que considero dos mais belos de quantos conheço e guardei na memória por mais de sessenta anos:

 

 A lua tão branca e bela,

 A mandado de Jesus,

Debruçou-se na janela

E pulverizou-nos de luz.

 

Outra feita, ao cruzarmos com uma procissão do Senhor Morto que saía da igreja do Bom Jesus dos Passos, na Ribeira, em plena Semana Santa, ele se descobriu e fez uma rogatória em versos que ficou famosa e acabou pirateada por muitos outros supostos autores.

 

Ó milagroso Jesus!

A vós só peço justiça.

Fazei com que minha cruz

Seja feita de cortiça.

 

Outro conterrâneo nosso, João Fonseca, grande poeta desconhecido, pois nada publicou, é autor desses versos que circulam no anonimato. Porém, por dever de justiça, vamos dar o seu ao seu dono… A César o que é de César…

 

O amor é mordedura

De aranha caranguejeira.

 Se não mata a criatura,

 Aleija pra vida inteira.

 

A propósito de João Fonseca – que você conhece apenas um pouco menos do que eu -, que fui seu companheiro de farras quando ele farreava, improvisamos certa vez, ao nos encontrarmos quando fazíamos a feira, aí no mercado em frente, bem cedo, antes do café da manhã. Perguntou-me por minha saúde e eu respondi que vivia atacado de prisão-de-ventre. Ele, então, imediatamente, recomendou-me, em versos, uma meizinha.

 

Prisão de ventre, quiabo.

Cerveja preta ou Pitu…

 

Sacando sua má intenção, acrescentei imediatamente aos seus versos, esta chave de prata.

 

   Tomei até o Diabo.

   Só falta tomar no cu.

 

Agora, vamos parar por aqui. Já me sinto cansado e você está se derretendo com esse calorão. Ave Maria! O mundo está ardendo. Estamos torrando á sombra… Quem sabe, outro dia, se eu estiver me sentindo melhor, possamos continuar essa sessão de versos que insistem em continuar gravados em minha memória… Vá com Deus. Vá com Deus, meu amigo…

Mas, antes que eu saísse, á porta, ele meteu a mão no bolso e deu-me um papel dobrado, onde escrevera em letras tremulas, João de Oliveira Fonseca é um dos poetas da geração que surgiu depois de 1922. Nasceu no Assu a 19 de julho de 1917. F ilho de Manuel Henrique da Fonseca e Silva e Delfina de Oliveira Fonseca. Estudou o primário e fez o curso prático de contabilista na terra natal. Leitura de poetas modernos. Funcionário aposentado da Prefeitura Municipal do Assu. Participou da antologia “Panorama da Poesia Norte-rio-grandense” [Edições do Val, 1965].  Agora, vá. Vá com Deus. Vá com Deus, meu amigo…