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Um povo contaminado de literatura não se deixa escravizar

Prêmio Nobel de Literatura peruano pertence a uma geração que acreditava ser a literatura uma forma de ação. Uma força transformadora que agiria de forma indireta.

*Mario Vargas Llosa

Para que serve a literatura? Essa é uma pergunta feita não apenas pelos inimigos da literatura e pelos leitores, mas também pelos escritores. Quando eu era jovem, quando descobri a minha vocação de escritor, foi a época do existencialismo, os anos da literatura comprometida. Todos concordamos que a literatura servia como uma manifestação de militância política. Por exemplo, os comunistas que acreditavam no realismo socialista como arma de combate da revolução mundial, e que por meio da literatura era possível explicar o que era a luta de classes.

Mas a literatura engajada tinha outra opção, mais sutil, mais rica, muito mais atraente, esboçada por Sartre em seu ensaio “O que é literatura?” E que, acredito, marcou profundamente muitos escritores de minha geração. Certamente me incutiu uma visão da literatura que, apesar de ter me distanciado muito das ideias de Sartre desde então, ainda tenho em mente. A ideia de Sartre é que a literatura não pode de forma alguma escapar ao seu tempo e que a literatura não é e não pode ser mero entretenimento. Literatura é uma forma de ação, palavras são atos a famosa frase de Sartre e através da literatura influenciamos a vida dos outros e a história. Não de forma decisiva, premeditada, com efeitos políticos mais ou menos imediatos, como acreditavam os partidários do realismo socialista. Mas sim de forma indireta, formando consciências que estão por trás de alguns comportamentos. De forma que, indiretamente, a literatura sirva, contribua para a ação na sociedade.

Essas ideias estavam profundamente enraizadas na América, na Europa e em todo o mundo nos anos 60. A partir dos anos 70 começaram a ser revistas e acho que hoje muito poucas pessoas no mundo as compartilham. Surgiram muitas ideias sobre o que é literatura, mas o que paira no ar é que a literatura serve para alguma coisa ou, se não, não se explica que ainda estamos lendo histórias. Não acho que seja uma atividade sem consequências cujo único motivo seja fazer as pessoas se divertirem.

O entretenimento é muito bom. Não se sinta desmoralizado se a literatura apenas servir para entreter. No entanto, estou convencido de que a literatura tem efeitos na vida. Mas esses efeitos não podem ser premeditados. Não há como o autor planejar o que escreve de forma que seu livro tenha certas consequências na realidade.

Um povo contaminado com ficções é mais difícil de escravizar do que um povo aliterário ou inculto. A literatura é extremamente útil porque é uma fonte de insatisfação permanente; cria cidadãos descontentes e insatisfeitos. Isso nos torna mais infelizes às vezes, mas também nos torna muito mais livres.

O produto audiovisual não pode substituir essa função da literatura. Gosto muito de cinema, vejo dois ou três filmes por semana, mas estou convencido de que as ficções cinematográficas não têm de forma alguma aquele corolário lento e retardado que a literatura possui no sentido de me sensibilizar para as deficiências do filme. Realidade e me faz sentir a importância da liberdade. Acho que aí podemos responder para que serve a literatura. É claro que serve para entreter. Não há nada mais divertido do que um poema ou um grande romance, mas esse entretenimento não dura pouco. Deixa uma marca secreta e profunda na sensibilidade e na imaginação.

Discurso de posse de Mario Vargas Llosa como doutor honoris causa pela Universidade de Salamanca em 6 de julho de 2015
Foto: Mario Vargas Llosa
Sergio Urday