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Um artista que flagra o avesso das coisas

Criador de uma arte alegórica que explora o avesso das coisas, Flávio Caramico Steffen se destaca por sua cultura e perfeccionismo técnico

*Franklin Jorge

A pintura entrou em sua vida na infância como qualquer criança. Todos temos acesso a material criativo e somos incentivados a produzir obras durante nossos primeiros anos, lembra. Somos, porém, levados a crer que o desenho e a pintura são práticas infantis e por isso os abandonamos como atividades de adultos, fator que nos distância dos aspectos criativos da vida. Em mim já havia na pintura um evento com bastante significado e desde criança tinha a Arte como parte fundamental daquilo que sou.

Flávio Caramico Steffen costuma trabalhar com três tipos de temas mais frequentes em sua obra que desperta em cada um de nós uma sensação de estranhamento. Tudo começa com a captação da do universo como ele o vê. O retrato, a paisagem, de acordo com a minha própria visão. Como o verso de Mário Quintana, diria: “o desenhista não desenha uma árvore, ele SE desenha uma árvore”. Também gosto de criar narrativas alegóricas na maior parte das vezes inspiradas em sonhos. E, por fim, reproduzir grandes Mestres é um trabalho que me dá grande prazer, como se fosse uma atividade de férias, por isso vez ou outra, busco a orientação deles.

Acho que não existe exatamente algo que vem primeiro, pondera. É justamente o oposto: existe na verdade uma profunda continuidade, uma fluidez que é mais visível que a independência de cada obra de um artista. Como se cada peça fosse a página de um grande livro. Existe é claro uma rotina, um procedimento. E nele existe uma sequência, mas ela é tão relevante quanto o apontar de um lápis ou o ajustar da cadeira. O mais importante é a conexão e a continuidade.

Como criador, tudo me inquieta. Não só como criador, mas como cidadão comum, como brasileiro, como ser humano… Nós vivemos numa época muito inquietante. Na verdade, a própria palavra “inquieta” é muito branda. Posso afirmar que tudo me ‘perturba’. A naturalidade com que entregamos meio milhão de pessoas à morte no Brasil, podendo ser evitadas. A idolatria com líderes políticos e religiosos extremamente estúpidos. A histeria com partidas de futebol, programas de tv, novas modinhas…, enquanto outros com suas pás enterram o país em uma cova coletiva. Quem hoje não está perturbado são as marionetes, não os brasileiros.

A caligrafia do seu trabalho está muito especificamente ligada ao Barroco. É uma obra dramática, menos racional e mais emotiva. Exibe uma dualidade sombria. Penso que isso é algo que faz parte daquilo que eu sou e como eu penso e encaro o mundo.

Todo seu universo artístico começa e termina no espaço de sua cabeça. O que se esconde ou se revela diz respeito a sua alma e não ultrapassa o seu horizonte de eventos. E como participante do universo da humanidade deseja e teme coisas relativamente próximas a qualquer um. Imagino que o que eu revelo ou oculto em minhas obras são as mesmas coisas que as pessoas mais diversas mundo afora também revelam ou escondem. Sempre deixando à luz do sol aquilo que tenho de mais agradável e mais atraente e me esforçando em tentar deixar nas sombras aquilo que não é tão bonito de se ver.

O surgimento de uma obra, o início dela, vem de uma ideia abstrata, de uma sensação, de uma lembrança fugidia, revela o artista que é também um perfeccionista instruído por uma vasta cultura visual e filosófica. Às vezes surge de palavras ouvidas ou lidas e às vezes vem de algum lugar puramente sensível e é difícil, por causa disso, encontrar explicações que sejam técnicas. Talvez não haja uma concepção. Talvez a obra simplesmente exista, vagando pelo mundo. E o artista é aquele com capacidade de absorvê-la e transmiti-la.

Como artista e criador, o que desperta a sua atenção é a beleza que existe em tudo! A elegância com que a vida se apresenta nas formas, cores e sensações. É aquilo que me fez perceber quando ainda era uma criança que a única resposta para a minha vida estava nas Artes.

Não existem grandes segredos que eu busque revelar ou esconder.  O que existe na verdade é uma representação daquilo que eu penso e daquilo que eu sinto. Creio profundamente que a falta de estudo cria um pensamento mágico que busca em outros um aspecto divino, fato que se derrama sobre o artista com frequência. Mas é um equívoco. O maior segredo é que não existe segredo algum.

Sem dúvida que eu tive grande influência na minha vida de outros artistas e autores que me abriram de alguma forma a percepção. É claro que são muitas as influências que construíram a minha estética, mas com certeza dois grandes nomes sempre se destacaram: Mestre Aleijadinho e Machado de Assis.

Na verdade, todos sabem qual é o enigma da minha Arte porque ele é o enigma da alma de todos nós. Pelo menos é o que eu quero acreditar. “é a verdade do universo e a prestação que vai vencer”. É o dilema do espírito e da matéria.

A monocromia está bastante presente em seu trabalho, principalmente por causa da maneira como lida com luz e sombras, sempre buscando uma representação mais Barroca, como orientadora do drama.

Especificamente essa preponderância da cor marrom nas minhas obras dos últimos anos está principalmente ligada a utilização da madeira como suporte da pintura. Trabalhei com Restauração de Obras de Arte, principalmente com o Barroco Mineiro e a madeira policromada o século XVIII me fascina.

Essa escolha estética pelo Marrom está mais ligada a maneira como eu enxergo a realidade e a transporto para o material artístico. No caso eu imagino a realidade de uma maneira Barroca, numa grande disputa da luz contra as sombras sobre um pano de fundo neutro. A madeira surge como esse suporte e seu tom marrom se derrama sobre a obra. Iniciar a obra a partir de um suporte branco, como a tela ou a maior parte dos papéis de desenho de alguma forma me incomoda. o suporte neutro traz uma equivalência entre a luz e as sombras na construção dessa microrrealidade. Cabe lembrar que além da cor marrom o cinza também possui essa importância no meu trabalho.

Sobre a crescente mediocrização das artes, contaminadas pela glamorização do irrisório e rasteiro, tem o artista um ponto de vista particular:

Não tenho certeza se existe uma mediocrização da produção artística. Vi grandes artistas surgirem recentemente. Creio na verdade que a mídia dos últimos 20 anos (principalmente a internet) permitiu que pessoas das mais diversas se expressassem com muito poucas fronteiras. E tanto a Arte quanto outros campos do conhecimento foram inundados por quem muitas vezes não teve acesso ao estudo formal daquilo que estão fazendo ou falando. Então aparece um cara que sem estudos se considera físico, epidemiologista, psicólogo, artista… E sem a base de estudos ele não tem os recursos formais para ver que está falando ou fazendo bobagens. É o efeito Dunning-Kruger, quanto menos você sabe sobre determinada área, mais acredita saber, pois não possui o ferramental que lhe permita distinguir seus próprios erros.

No ano passado a History Channel fez vinte anos de Brasil, sei pelo comercial veiculado em várias mídias. Nessa peça publicitária, muitas personalidades parabenizaram o canal com suas próprias palavras, sempre muito delicadas. Nenhuma das personalidades eram historiadores. Veja bem: nenhum historiador quis ou foi procurado para dizer parabéns para o History Channel? Será que tem a ver com o fato que esse canal só fala de alienígenas e galpões vazios no Texas? Então como ostentam a palavra História no nome?

O mesmo se aplica a Arte. Continuamos produzindo grandes artistas, assim como historiadores. Mas eles agora competem com o “intelectual free-style”, que estudou na escola do WhatsApp e na faculdade do Youtube, instituições que dão diplomas de graça para quem quiser aprender sobre qualquer coisa (só que não!).

Muitas são as respostas, a seu ver, sobre o utilitarismo ou não das artes. Em algum momento, talvez em uma caverna, ou ao redor do fogo, alguém transformou um objeto vulgar na primeira obra de Arte. Talvez uma pedra ou osso que ela ou ele entalhou. Não havia motivos para isso. Não resultou em caça nem abrigo. Mas deve ter atraído a admiração de todos que vislumbraram em um objeto a alma transplantada daquele que o modificou. Não posso responder pelos outros, para mim a Arte é um processo contínuo de transferência da alma de um indivíduo para um objeto artístico (material ou imaterial), até o esvaziamento do artista que deixa de ser uma pessoa para se tornar um personagem, passando então a viver na obra que criou.

Como a obra de arte não é finalizada pelo artista, mas sim pelo espectador, é na sua mente dele que o autor dá a sua última pincelada. E nesse processo ele continua vivo nas mentes e corações das gerações vindouras.

Seria capaz de viver sem pintar?

Bom… haveria algum tipo de vida sem Arte com certeza, mas tolhido de mim aquilo que sou, passaria a existir como um parvo. Limitando-me às realidades orgânicas rasteiras, incapaz de voar. Creio que todos têm alguma motivação genuína que nos conduz diariamente e, penso que se forem removidas essas motivações pouco sobrará do ser que a portava.

 

 

 

Em destaque, autorretrato de Flavio Caramico Steffen; acima, o artista pintando.