• search
  • Entrar — Criar Conta

Silvia sempre viva

Fundador de Navegos, inspirado por suas lembranças consignadas nos três volumes de suas memórias do Rio de Janeiro, evoca uma das personagens mais importantes da nossa Cultura e do seu convívio quando artista ainda jovem e cheio de esperança.

*Franklin Jorge

Sob o influxo de uma avalanche de velhas lembranças já soterradas pelo esquecimento, veio-me subitamente à memória a doce figura de uma velha amiga que em seu tempo teve o privilégio de conviver no círculo mais íntimo de personagens, hoje históricas, como Cândido Portinari [1903-1962] Ismael Nery [1900-1934], Murilo Mendes [1901-1975], Graciliano Ramos [1892-1953], Georges Bernanos [1888-1948], Vicente do Rêgo Monteiro [1899-1970], Carlos Drummond de Andrade [1902-1987], Jorge Amado [1912-2001] Dante Milano [1899-1991], Miguel Ángel Astúrias [1899-1974], Prêmio Nobel de Literatura, Trinaz Fox [1899-1964], Heráclito Sobral Pinto [1893-1991], Dorival Caymí [1914-2008], Clementina de Jesus [1901-1987],  Carlos Niemeyer [1907-2012], Joaquim Cardozo [1897-1978], e de políticos como Luís Carlos Prestes [1898-1990], João Amazonas[1912-2002], Paulo Cavalcanti [1915-1995], Miguel Arraes [1916-2006],  Leonel Brizola [1922-2004], e outros próceres do Comunismo no Brasil.

Refiro-me à jornalista e pintora naïf Sílvia de Leon Chálreo, de origem austríaca, desportista, considerada feminista em sua mocidade, amiga de Bertha Lutz [1894-1976] e aclamada nadadora e desportista, atuou desde cedo no jornalismo carioca e realizou a incrível proeza de atravessar a nado a baía da Guanabara. Costumava nadar nessas águas ainda não poluídas em companhia do poeta Murilo Mendes, então seu noivo,  e a jogar tênis com ele e Adalgisa Nery, fãs desse aristocrático esporte importado da Inglaterra.

Comunista precocemente desiludida, ao inteirar-se dos horrores a que os artistas eram submetidos, segundo ouvira da boca de alguns deles e de outros refugiados russos, destacou-se como feminista sem ranço de feminismo. Manteve, contudo, a amizade com Prestes e com protocomunistas famosos, dentre os João Amazonas e o pernambucano Paulo Cavalcanti, que a visitou ao voltar na União Soviética.  Com o tempo Sílvia se conscientizou que o Comunismo era uma tirania que menosprezava os valores humanos, torturava e matava impiedosamente em nome do poder e da aquisição de rioquezas para seus líderes, perseguindo àqueles que ousassem pensar livremente sem os grilhões de sua cartilha ideológica.

Tinha Sílvia uma afeição maternal por mim e dizia às pessoas do nosso pequeno círculo que eu despertara nela instintos maternais. Quando tive uma gripe que me prostrou, foi buscar-me à Rua Felipe de Oliveira 8, em Copacabana, para levar-me ao seu espaçoso apartamento à Rua Marquês de Abrantes 11, no Flamengo, num décimo primeiro andar, para cuidar pessoalmente de mim e curar-me com os seus desvelos. Seu apartamento era conhecido como Maracangalha, em alusão à música famosa. a compra do imóvel coincidiu com a explosão musical que fez dessa composição  um sucesso nacional.

Das janelas desse apartamento imortalizado em poema de Carlos Drummond de Andrade, assisti às efusivas comemorações da Copa do Mundo de 1972 com o seu tsunami de papéis picados que desciam em catadupas das janelas dos edifícios que ladeavam a rua que ainda conservava uma atmosfera residencial. Fazendo-me deitar em sua própria cama, levava Sílvia a canja de galinha em colheradas à minha boca, limpando-a cada vez com um guardanapo de linho umedecido em água de rosas que lhe fornecia a Casa Granado e abastecia uma grande bacia de porcelana à minha cabeceira, segundo ela, para as minhas abluções matinais. Ela mesma tirava-me cuidadosamente a barba, massageando minhas bochechas com uma pedra de gelo.

Passava horas ao meu lado, contando-me sobre a revista que fizera publicar em Lisboa e a contrabandeava pela Mala Diplomática que não seria revistada pela feroz polícia política da Ditadura Vargas [1930-1945], que ela combatia ardorosamente, como combatia o Salazarismo e seus horrores em campos de concentração como o do Tarrafal. Era amiga de muitos escritores e artistas portugueses e estrangeiros perseguidos por Salazar, recebendo e encaminhando esses refugiados que tentavam sobreviver no Brasil, livres das inomináveis torturas praticadas por ditadores contra aqueles que questionavam ou se opunham à ideologias de esquerda e de direita, como se registrava em Portugal. Por diversas vezes foi autuada pela polícia política do ditador gaúcho que, por temer sua influência e por rogos de amigos prestigiosos que tinha em grande número, alguns inclusive entre Ministros de Estado, nunca a torturou.

Conheci-a, primeiro, por sua colaboração no Jornal de Letras, dos Irmãos Condé [João, José e Elísio], onde escrevia sobre Artes Plásticas e era conhecida por sua disposição de ajudar jovens artistas ou artistas consagrados empobrecidos pelos azares da política. Era, portanto, muito querida e procurada por todos aqueles que se consolavam com suas ações e generosas palavras. Muito aprendi com ela sobre os refugiados russos e espanhóis que escaparam às tiranias do stalinismo, do franquismo, do salazarismo, de Mussolini e do peronismo e intentaram refazer suas vidas em uma terra que para eles seria a da Promissão.

Amiga de Mário de Andrade [1893-1945], de Patrícia Galvão 1910-1962], celebrizada por seu apelido Pagú, e de seu companheiro o poeta e teórico Oswald de Andrade [1890-1954], antropofágico modernista com quem achava que eu teria alguma coisa em comum, coincidindo assim com a dedução de Ascendino Leite [1915-2010], grande escritor e jornalista Ascendino Leite, que eu viria conhecer somente alguns anos depois e a almoçar com ele uma vez por semana num daqueles restaurantes árabes ou portugueses do velho Centro do Rio de Janeiro. Mas isto é outra história que certamente dará sua crônica.

Walmir Ayala [1930-1991] a adorava, mas evitava visita-la por causa de seu companheiro, Labanca, ex-ator de espessa e bem cuidada barba branca quando o conheci, estreara pelas mãos de Zbigniew Ziembinski [1908-1978], diretor polonês que mudaria a história do Teatro Brasileiro com a revolucionária encenação de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, em 1949. João Ângelo Labanca [1913-1988], formado em Direito, a que chamávamos de Carlos Labanca, não sei porque, trocara o palco pelo sindicalismo, vivendo por muitos anos, a partir de 1960, amasiado no mesmo apartamento de Sílvia, na companhia de seu amante Pedro Weiss Xavier, uma figura por quem os amigos da artista e jornalista mantinham certo distanciamento.

Os dois, Pedro e Labanca, embora me tratassem polida e educadamente, evitavam-me, dirigindo a mim apenas expressões protocolares e em seguida se recolhiam aos seus aposentos toda vez em que eu aparecia por lá, para me informar sobre a história da renovação das artes no Brasil e principalmente para distrair a Sílvia que nesse período de nossa convivência somente saiu de casa umas três ou quatro vezes, que eu saiba, uma delas para o vernissage da exposição de Axl Leskoschek [1889-1975] em galeria de Botafogo, artista austríaco de quem desde 1939 se tornou amiga.

Em 1939, fugindo da Ocupação de seu país de origem pelos nazistas, Axl refugiou-se no Brasil. Aqui, introduziu o estudo da Gravura e deu um novo incremento às técnicas do moderno desenho publicitário e à cenografia. Foi professor de artistas que se tornariam famosos, entre os quais Ivan Serpa [1923-19730, Fayga Ostrower [1920-2001], Renina Katz [1925-] e Edith Behring [1916-2016], que Sílvia insistia que eu os conhecesse. Me lembro que Sílvia, agarrada a uma pequena bolsa de couro, vestia saias de cor vermelha e uma blusa branca de seda branca, adornada por algumas camadas de renda tecidas a mão com que a presenteara minha avó materna, em agradecimento à atenção e cuidados que ela costumava me dispensar. Ela mesma as pregara em sua blusa com o auxílio de uma agulha de mão.

Em 2013 recebi o exemplar de um livro improvisado sobre sua obra ingênua e personalíssima. Doei obras suas à Pinacoteca do Estado do RN, que fundei em 1983, pertencentes ao meu acervo particular, mas que tive o cuidado de doar em seu nome, para valorizar a doação e despertar o interesse de outros artistas pela instituição que eu desejava viesse a se tornar importante para a nossa cultura.