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Resistência e cangaço nos Quadrinhos potiguares

Articulista de Navegos comenta obra recém-lançada de Marcos Garcia, Carlos Alberto e Marcos Guerra e acusa o esgotamento da temática cangaceira e a sua revitalização através da ficionalização da história.

*Renato de Medeiros Jota

Terminei agora mesmo de ler a História em Quadrinhos Lampião na terra dos santos valentes de Marcos Garcia, Carlos Alberto e Marcos Guerra. Obra bacana que mostra a resistência do povo mossoroense ao bando de cangaceiros de Lampião. O dinamismo da história, os desenhos expressivos e limpos, a arte final, o competente   traço à pincel de Carlos Alberto (Galego) dão um belo ornamento a uma trama já tão explorada no imaginário mossoroense do combate de uma cidade a uma invasão indesejada de cangaceiros. Diante de tantas abordagens já “chupadas” sobre o tema que vai desde historiadores, contistas, cordelistas e quadrinistas o que resta para contar? Difícil resposta, já que parece que tudo o que tinha para ser contado já foi.

O caminho que resta a fazer é o da ficção, de contar uma história não tomando o evento histórico em si ou um personagem central como os cangaceiros Lampião, Jararaca, Massilon Leite ou o prefeito Rodolfo Fernandes. Mas buscando se apropriar de elementos intrínsecos a trama em si, eventos não contados ou não explorados adequadamente como só os quadrinhos são capazes de fazer. O que podemos observar é que as tomadas dinâmicas dos requadros, a forma como o jogo de câmera utilizado dá um dinamismo ao combate na cidade.

A construção da tensão é feita aos poucos e vai exercendo a sua ascendência até chegar ao clímax final. Personagens como Massilon, Jararaca destacam-se mais na história assim como o prefeito Rodolfo Fernandes, até aí, nada diferente do que observamos nos livros de história e relatos de pesquisadores e outras histórias em quadrinhos. Mas a abordagem de Marcos Garcia, Carlos Alberto e Marcos Guerra, objetiva aprofundar-se numa estética da violência, buscando ir além disso ao mesmo tempo levanta algumas questões a respeito dos motivos que levaram ao ataque. Seria a pura cobiça? O prestigio de ter atacado uma cidade e a conquistado? Seria vingança por algum mau feito? São questões que se misturam na hq e levam a história adiante.

O que me impressiona na realidade é a versatilidade existente no quadrinho como retrata a dinâmica da trama e seu desenvolvimento na narrativa gráfica. Uma descrição de paisagem, o clima seco, a caatinga é retratada de forma vivida e representa a economia da linguagem da paisagem desértica da caatinga. A narrativa flui sem barreira, não há gorduras na trama, texto em demasia, vai-se direto a trama e não se poupa na forma de retratar a história.

É clara a pesquisa histórica existente na história em quadrinhos “Lampião na terra dos santos valentes”, Já que percebemos uma contextualização de fatos históricos bem localizados na trama que só quem leu e conhece o ocorrido sabe descrever. Os autores da revista enfatizam essa pesquisa ressaltando que mesmo sendo uma ficção leram muito material relacionado ao evento para poder produzir algo verossímil na História em quadrinhos. Observar a narrativa, os locais históricos mencionados, as figuras históricas, ruas, a igreja onde ocorreu grande parte do tiroteio e alvo da superstição e receio de Lampião e seu bando em atacar a cidade da igreja e suas torres, dá atônica de tragédia que está por vir.

Impressiona a caracterização dos personagens feitas por Marcos Garcia, Carlos Alberto e Marcos Guerra, mostrando profundidade e conflito de emoções capazes de levar o leitor a identificar-se de imediato com a trama e história. Não existe personagem que se destaque um do outro, talvez quem sabe Massilon e Jararaca, devido centralizar-se no primeiro personagem uma sub trama envolvendo o prefeito e Massilon, outro personagem que aparece contribuir para história é Jararaca pelo mistério do paradeiro de seu corpo. Poderemos considerar que o caminho escolhido pelos autores da hq procuram se aprofundar no aspecto das decisões e nas causas e consequências das escolhas de cada personagem. Até mesmo lampião expressa emoções conflitantes quando percebemos sua resistência a entrar na cidade por sua indecisão baseado na superstição da igreja e suas torres.

Podemos ainda nos reter em uma análise um pouco mais profunda, ligada ao aspecto representacional de duas forças antagônicas. Por um lado, os cangaceiros representariam a força externa da violência gerada pela natureza se contraponto a um outro tipo de violência representado pelos aspectos ditos civilizatórios da cidade. Nesse embate entre natureza e civilização podemos ver o embrutecimento tanto de um lado quanto do outro. Deixados a análise dos aspectos morais de lado, sem saber quem está certo ou errado na história, creio que não é esse o objetivo da hq. O que se observa é os sentimentos divergentes que percorre toda a história. Amor e ódio, medo e coragem, sentimentos conflitantes que acompanham toda a trama, desperta a empatia do leitor para com a hq, através do exercício das emoções, é o liame que percorre toda a história.

Se considerarmos qual o sentimento que se destaca em Lampião, fazendo um recorte rápido nessa história, seria o rancor. Isso é o que dá motivo para a invasão, elaborado por Massilon e suas desavenças com o prefeito que foi a causa motriz da invasão de Lampião convencido por este a invadir a cidade. Além disso lá para o final temos o próprio rancor de Lampião e sua subsequente vingança pela traição de Massilon por levar o seu bando ao encontro com a morte na cidade. Como vimos, a hq de Marcos Garcia, Carlos Alberto e Marcos Guerra tem uma camada profunda que vai do apenas aparente registro histórico e centra sua atenção ao aspecto subjetivo de cada personagem e seus conflitos. Uma obra bacana e muito bem elaborada, que recomendo a todos a leitura.

A obra pode ser adquirida pelo e-mail: [email protected]

Renato de Medeiros Jota é crítico e pesquisador de Quadrinhos