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Piranesi: a vida é um cárcere

Primeira mulher recebida pela Academia Francesa, escritora belga se detém na apreciação dos cárceres imaginados por Piranesi, um  dos grandes mistérios da arte, vistos como pesadelos criados por uma lógica sinistra.

*Marguerite Yourcenar

“A Dinamarca é uma prisão”, diz Hamlet. “Então o mundo também é”, responde o insípido Rosencrantz, espancando o príncipe vestido de preto pela primeira vez. Piranesi deve ter uma concepção do mesmo estilo, uma visão clara de um universo de prisioneiros? É fácil para nós – ofuscado por dois séculos adicionais de aventura humana – reconhecer esse mundo limitado, mas infinito, onde enxameiam fantasmas obsessivos e minúsculos: reconhecemos o cérebro do homem. […]

Vamos contemplar aqueles Carceri (Cárceres), que são, junto com as pinturas negras de Goya, uma das obras mais misteriosas que um homem do século XVIII nos legou. Em primeiro lugar, é um sonho. Nenhum conhecedor da matéria onírica hesitará por um momento diante daquelas páginas marcadas pelas principais características do estado de sonho: a negação do tempo, o desnível do espaço, a levitação sugerida, a embriaguez do impossível reconciliado ou superado, um terror mais próximo de o êxtase do que pensa quem, de fora, analisa os produtos do visionário, a ausência de laços ou contatos visíveis entre as partes ou personagens do sonho e, por fim, a beleza fatal e necessária.

Além disso, e para dar à fórmula baudelairiana seu significado mais concreto, é um sonho de pedra. Carceri; apenas a madeira de uma viga, o ferro de um macaco ou uma corrente aparecem ao lado dela, aqui e ali; o oposto do que aconteceu em Vedute e Antichità, a pedra, o ferro e a madeira deixaram de ser substâncias elementares para não mais serem do que uma parte constituinte do edifício, sem relação com a vida das coisas. O animal e a planta são eliminados daqueles interiores onde reinam exclusivamente a lógica e a loucura humana; nem mesmo o mais leve musgo mancha aquelas paredes nuas.

Os próprios elementos estão ausentes ou intimamente subjugados: a terra não aparece em lugar nenhum, coberta por pavimentação indestrutível ou pavimentação; o ar não circula; nem um sopro de vento – no prato onde estão os troféus – anima a seda esfarrapada das bandeiras; uma imobilidade perfeita reina nesses grandes espaços fechados.

Marguerite Yourcenar
The Black Brain of Piranesi, 1979

Gravura de Giovanni Batista Piranesi
Carceri d’invenzione, 1760