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Os que lá estão, por nós esperam

Passeio por necrópole parisiense faz escritor potiguar saudar o que expoentes universais da religião e da arte legaram; diante dos túmulos, o também professor reflete sobre valores humanos

Antenor Laurentino Ramos

Visitei o cemitério Père-Lachaise, em Paris, duas vezes. Levava-me aquele retiro dos mortos o desejo intenso de visitar o túmulo de Allan Kardec (1804-1869), o admirável codificador da Doutrina Espírita. Já sabia de sua fama e da corrida ao seu túmulo de inúmeros fiéis dessa crença espiritualista. É uma emoção muito forte que só a sente quem está imbuído de seus ensinamentos e da convicção de que a vida vai além do corpo físico.

É o de Édith Piaf (1915-1963), a grande cantora, um dos túmulos mais visitados da capital parisiense. Tudo bem arrumadinho, e flores em abundância seriam necessárias para percorrer esse famoso Campo Santo. Além desses dois filhos ilustres da França, outras celebridades ali repousam os seus restos mortais.

Uma coisa que me chama atenção, na terra francesa, é o culto à memória de seu povo. Tudo ali nos fala de um pedaço da França e do mundo no seu devido tempo. Junto ao túmulo de Kardec, repousa Honoré de Balzac (1799-1850), o grande escritor de “Engénie Grandet”. Nas proximidades, vejo o lugar onde dorme o sono eterno – e isso, que fique bem claro, nada mais é que uma figura de linguagem – a mulher mais bela e marcante de seu tempo, Sarah Bernhardt (1844-1923), a grande atriz. E diante de cada jazigo, sou forçado a reconhecer a fugacidade da vida material. Se o nosso existir se resumisse apenas a isso, seria de uma pobreza extrema a obra do Criador. Recuso-me a aceitar tal visão materialista e medíocre de conceber a vida.

A criatura humana não pode se resumir ao mero uso dos sentidos carnais, sem nada que o engrandeça, e é isso que o distingue dos outros seres: o transcendental. Tudo o que no mundo existe, afora Deus, é fruto da inteligência humana, e a eternidade de seus efeitos é que lhe dá o devido valor. Vão-se os homens, criaturas humanas, transitórias, mas fica nosso o que por eles foi construído e que tem a ver com Deus. O livre arbítrio que lhes foi destinado permite que escolham o caminho que os envilece ou os enobrece. Tal entendimento é que torna mais prazerosa essa visita.

Mais adiante, chegamos ao túmulo de Frédéric Chopin (1810-1939), o gigante da música clássica, o autor das célebres e belíssimas valsas polonesas. Tive até vontade de chorar tão grande a emoção. Por que Deus nos permite esta visão, certamente que alguma coisa nos quer dizer.

Fui, a seguir, à procura de Oscar Wilde (1854-1900), o poeta que ousou falar nos tribunais sobre o amor que “não quer dizer o seu nome”. Um túmulo bonito, com uma inscrição em inglês, mensagem de saudades de uma misteriosa mulher de véu negro que nunca foi identificada.

Todo o sofrimento moral do grande artista irlandês, que terminou seus dias esquecido no único refúgio que lhe foi possível encontrar: Paris. Aplaudido pelo povo britânico nos teatros e humilhado e repudiado nas ruas da capital inglesa, num flagrante atestado histórico da hipocrisia dos homens, Wilde ali nos reaparece com toda a sua grandeza.

Onde estão aqueles que o vaiavam e apedrejavam? Esquecidos, ignorados pelos que vivem no presente, enquanto o extraordinário autor de “O Retrato de Dorian Gray” continua vivo, imortal, cada vez mais imortal no que nos legou de belo. O cemitério do Père-Lachaise nos proporciona com isso momentos de reflexão sobre o que são as coisas da vida, daquilo que nela mais importa. Temos piedade dos tolos que não enxergam na criatura humana nada mais que um feixe de ossos e de carne. Nós somos mais do que isso. Não existe nada de imoral naquilo que Deus criou. Nossa cegueira materialista é que nos impede tal compreensão.

É com um passeio como esse, feito por mim ao famoso cemitério de Paris, que nos é dado entender o que é a vida.

E o meu passeio continua. Agora, Maurice Thorez (1900-1964), Edgar Faure (1908-1988), Marcel Proust (1871-1922), autor do clássico “À Procura do Tempo Perdido”, e o jazigo perpétuo da família Chateaubriand, descendentes do grande iniciador do Romantismo francês, e mais teria, se tempo houvesse, a falar desse monumento que é o Père-Lachaise, e que, por um breve período de tempo, agasalhou também os restos mortais de um dos pioneiros da aviação, conterrâneo nosso, o notável Augusto Severo (1864-1902), filho da humilde cidade de Macaíba, como também são seus irmãos Pedro Velho (1856-1907) e Alberto Maranhão (1872-1944), todos construtores da história norte-rio-grandense.

Não esquecerei jamais dessa visita, que muito me marcou. Seria tão bom que imitássemos o povo francês naquilo que tem de melhor: o culto à memória. É o que mais admiro nele. Natal, sobre a qual tanta coisa tem para se dizer, resume-se aos olhos ignorantes de muitos de seus filhos à cidade das praias e dos shoppings. Desde quando praia e shopping são marcas distintivas de um lugar? Só a nossa falta de memória, o esquecimento da biografia do nosso povo nos impede de ver melhores coisas. Que nossos governantes se conscientizem disso e tomem alguma providência para que tal situação não permaneça. Infeliz do povo que não preza a sua história, os seus fatos e os seus mortos. Seria até melhor que nem existisse.

Antenor Laurentino Ramos, professor das redes pública e privada aposentado, é autor do livro “Memorial da Anta Esfolada” (FeedBack; 172 págs.; 2014).

CHÃO DE ESTRELAS Acima, portão do cemitério Père-Lachaise, em Paris, onde está o túmulo do escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde (à dir.); inspirada em seu poema “A Esfinge sem Segredos”, a escultura, criada por Jacob Epstein em 1912, é patrimônio histórico da França; local também abriga as sepulturas de Jim Morrison, Maria Callas e outros