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Os Penitentes de São Bernardo

Pesquisador e folclorista, autor de memorial sobre a vida e as tradições de Luis Gomes resgata uma tradição popular, de cunho religioso, já desaparecida, ao focar nos chamados Penitentes do Sítio São Bernardo, que lhes deu o nome e fez daquele recanto, durante gerações, o endereço de uma peregrinação eu remonta à Idade Média europeia.

*Antonio Roberto Fernandes

Penitência pode ser entendida como uma forma de conversão, de mudança de mentalidade, de aproximação e comunhão com Cristo. De acordo com os preceitos religiosos, as principais formas de penitência são a oração, o jejum e a esmola.

Entretanto, há outras práticas e rituais para materialização da fé, da devoção e reconciliação com o Pai Todo Poderoso. A busca pela contrição e remição dos pecados também ocorre por meio de outros ritos, uma prática que remete ao transcurso da condenação e sofrimento de Cristo até ao Calvário.

Em São Bernardo, vila equidistante 04 km de Luís Gomes, a prática da penitência tinha na autoflagelação um contorno místico, secreto e espiritual, de pessoas capazes de enfrentar a dor como forma de purificação e redenção dos pecados, em busca de paz, de alegria neste mundo e da salvação eterna.

Na comunidade, essa forma de devoção surgiu na década de 1940, aproximadamente, inspirada na tradição de penitentes de Juazeiro do Norte, de Padre Cícero Romão, sendo uma prática também existente na comunidade de Canudos, de Antônio Conselheiro. Para entender melhor essa história, nada melhor do que os relatos de Ana Ismael do Nascimento, Isabel Maria da Conceição, Simão Bernardo de Araújo, Maria Antônia da Conceição, Antônia Jorge e Creuza Maria da Conceição, ex-penitentes.

De acordo com suas narrativas foram José Bernardo de Araújo (Zé Borracheiro) e Antônio Bernardo de Araújo que trouxeram o ritual para a Vila, juntamente com Né Gido, o primeiro Decurião, isto é, líder e orientador do grupo. O termo decurião é uma designação de origem latina, que se remete ao comandante e oficial de cavalaria do exército romano.

Os rituais aconteciam nas segundas e sextas. O pessoal se encaminhava para um lajeiro, sobre o qual tem o rastro da pegada lendária de Nosso Senhor, do jumentinho e da bota de São José, próximo ao cruzeiro do Alto do Tabor. A cruz, como de costume, seguia a frente. Os penitentes vestiam roupas brancas, camisa sobre a cabeça para manter a confidencialidade, calças arregaçadas até a altura do joelho, se curvavam para a realização do sacrifício, com a disciplina, uma espécie de chicote com cordões de couro e lâminas de metal na ponta, que arremessadas sobre o dorso cortava com impetuosidade, deixando-o em carne viva. Para muitos, quanto mais se penitenciava, quanto mais chicotadas, melhor era o ritual.

Quem desejasse entrar na turma teria que fazer um juramento, comprometendo-se a não consumir álcool ou outras drogas, não contrair relação com a mulher, não cometer falso testemunho, não falar palavras grosseiras e manter um comportamento íntegro naquele período quaresmal. Depois teria que se açoitar, de forma espontânea e solitária, para depois ser admitido pelos demais.

Quando as chuvas eram escassas, a plantação definhava-se a ponto de se perder tudo, o grupo realizava suas orações, cânticos, benditos (as doze incelêncas) pedindo graças:

Mandai chuvas Senhor

Pelo Amor de Deus.

Ao fim do canto a chuva começava a cair, como um milagre. Águas que tem poder de restaurar, numa simbologia de libertação, transformação e glorificação da vida das pessoas.

O culto de conversão acontecia na casa do Decurião, de alguns membros e no Alto do Tabor, local preferido. Aconteciam à noite e demorava horas. Conta-se que, por volta de 1962, Padre Osvaldo se encontrava na Vila São Bernardo, justamente durante o encontro dos penitentes. Na condição de pai espiritual do município, levado pela fé daquela gente e por uma forte curiosidade, pediu para entrar e assistir a cerimônia, mas o Decurião informou que não era possível, por se tratar de uma sociedade secreta, em ato solene, com suas próprias regras. Padre Osvaldo, inconsolado, chorou.

Após as cerimônias, as paredes e o chão do santuário e das casas, onde havia os encontros, ficavam manchados de sangue. Ao fim era necessário lavar tudo, porque ali estava a sombra do pecado. Pelas repetidas cenas de autoflagelo e de expressão genuína e autônoma de fé e de convicção no amor do Pai, o Alto do Tabor é considerado um lugar sagrado, que fora sublimado pelo sangue, pela oração e pela fidelidade ao Senhor.

Muitos eram os benditos e ladainhas que entoavam com imenso embevecimento. De Santa Rita, de Santo Antônio, de Senhora Santana, de Santo Agostinho e do Bom Jesus do Calvário, entre outros. Expressões populares na forma de cântico, que possui variações de região para região:

Oh, meu Senhor do Calvário,

Vossa cruz é de oliveira

Foste o mais Lindo Cravo

Que nasceu entre a roseira.

Vossos Divinos Cabelos

Mais fino de que mesmo o ouro

Quem me dera tá lá dentro

Naquele Santo Tesouro.

Vossa Divina Cabeça

Toda cravada em espinho

Agora dizemos todos

Meu bom Jesus do Bonfim.

A Vossa Divina Testa

Mais alva do que a neve pura

Vamos deixar esse sangue

Lá na rua de amargura.

O Vosso Divinos Olhos

Declinado para o chão

Oh fitado para nós

A Vossa Divina Paixão.

Enquanto entoava o cântico a depoente, em certos momentos, não segurava a emoção e as lágrimas caiam de saudades daqueles tempos. Isso demonstra o tamanho do significado daquelas práticas de grande fé e adoração por Nosso Senhor. Pelo bendito é possível compreender a adoração pelo Deus do Amor e a sua vitória gloriosa na salvação da humanidade, a partir do calvário e da ressurreição. O flagelo também representava uma forma de reconciliação com o Pai, na expurgação dos pecados e na busca de misericórdia divina.

O diálogo existente entre o terreno e o divino, entre o plano carnal e espiritual, entre a vida e a morte, são ritos que interligam os dois planos, havendo contato, inclusive, com as almas no furor da “disciplina” e a despoluição dos pecados da própria comunidade, numa entrega altruísta e fraterna. Além disso, os rituais podiam conferir poderes místicos aos penitentes. Com a oração de Santo Antônio era possível adquirir o poder da invisibilidade. Assim, vê-se o inimigo, mas ele não vê nada, conforme disse Ana Ismael do Nascimento, mais conhecida como D. Nana:

A primeira cantada do galo quando mamãe se levantou, seu pé direito calçou e seu caminho caminhou… O que faz Antonio? Cuido dos meus inimigo, senhor.[?] – volta pra traz Antonio. Se teus inimigos tiver perto eu não te alcançarei; se tiver olho, não te enxergarei, se tiver mão não te ofenderei; se tiver boca não te falarei. Volte pra traz Antonio… [?] Três anjos da cor do céu e Jesus (COSTA, 2010, p.96).

Ao cair dos anos, os remanescentes do grupo morreram, a turma foi diminuindo e os demais integrantes não controlavam os prazeres da carne, inviabilizando as atividades que, finalmente, encerraram no ano de 1970.

Atualmente, não existe no município de Luís Gomes nenhum tipo de ritual semelhante ao que ocorrera com os penitentes de São Bernardo. Uma tradição religiosa que persiste apenas na memória e na oralidade dos conhecedores.