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Os cadernos de Jorge Antonio

Fundador de Navegos reúne aqui fragmentos de diários seus e os atribui a Jorge Antônio, seu duplo ou heterônimo, sempre presente em seus escritos em homanagem a seu avô matgerno [Jorge Palhano do Nascimento] e de seu avô postiço e Padrinho de Batismo, Antônio Gentil da Fonseca.

*Franklin Jorge

[email protected]

Que é de ti, melancolia? Manuel Bandeira.

                               Quero cantar a melancolia. Villaça.

.Escrever pressupõe uma fome de leitura. Dos livros. Dos fatos. Da vida.

.Escrever, hoje, para a posteridade. Eis a secreta e misteriosa ambição do escritor.

.Só muito tardiamente descobri minha verdadeira vocação – a sala de aula, a cátedra.

.O fracasso é mais instrutivo que o êxito.

.Aprendemos mais com o fracasso do que com o sucesso.

.O êxito não acrescenta nada ás experiências de um escritor cônscio do que cria. Pode até constituir em atraso, ou em perda de tempo, para a obra.

.Ler pressupõe analisar e interpretar. Como uma atividade posterior à escrita, exige-nos mais que mera fruição, embora o prazer deva estar associado à leitura. Disse Borges que não devemos ler sem prazer, que devemos interromper a leitura quando somos tomados pelo tédio e o aborrecimento.

.A autossatisfação deve ser evitada pelo escritor.

.Releio-me, apenas, para corrigir-me.

.Não encontro satisfação nos meus livros. Escrevo-os, porque somente eu poderia escrevê-los.

.Não me sinto satisfeito quando concluo uma página. Sinto, sim, especialmente, a satisfação que o cansaço proporciona. Creio ser esta a paga do escritor. A qualidade do seu cansaço, semelhante ao do homem que amanha e lavra a terra.

.Um artista é alguém que, podendo ter êxito, renuncia a todas as vantagens que o êxito vulgarmente proporciona.

.A solidão entra na composição do trabalho honesto.

.Disse Marguerite Yourcenar que é desvantajoso para o escritor morrer antes dos quarenta anos. Realmente, nessa idade, atingimos forçosamente um patamar que nos proporciona uma visão mais ampla do que somos e do que não seremos jamais. Contudo, continuo achando com os gregos que, aqueles a quem os deuses amam, morrem jovens. Viver envilece.

.Um escritor é alguém que sabe que o inferno existe.

.Há muitos infernos, mas creio que o da criação supera os demais em provações e tormentos.

.Não creio que haja algo mais interessante para se fazer, nesta vida, do que arte.

.Apesar de sua curta duração, creio que apenas um ano, o Grupo Cobra escreveu uma página da cultura da cidade. Reuniu, sem constituir uma capelinha, artistas das mais diversas tendências, que, em conjunto e individualmente, afirmaram a vocação de Natal para o cosmopolitismo. E tudo isso sem queimar livros, sem fundamentalismo e sem exigir submissão a credos.

.O inferno concerne à lucidez.

.Como Walmir Ayala, sempre tive a ambição de colecionar pessoas raras. Por isso, sempre busquei a companhia dos melhores.

.O jornalismo – ou melhor, a entrevista – ensinou-me a ouvir e a ter paciência.

.A paciência é das mais preciosas virtudes. E, às vezes, me falta!

.Tenho, frequentemente, a ousadia dos tímidos.

.O Padre José Luís viu Natal como uma madrasta ingrata. Uma vez, conversando com ele em seu quarto de hotel, ele me disse fosse embora quanto antes, para qualquer lugar, desde que a milhares quilômetros de Natal. E justificou: Natal é uma madrasta ingrata. Se ficar aqui, jamais o seu talento será devidamente reconhecido. Aqui as pessoas gastam duzentos para impedir que ganhemos vinte, como diz Cassiano [Arruda Câmara]. Penso que não era uma mera boutade.

.Hoje, busco apenas o silêncio e um pouco de obscuridade. Seria bom demais morrer anonimamente, em João Pessoa, por exemplo, e ser enterrado no Cemitério da Boa Sentença, uma denominação muito adequada para a casa dos mortos.

.Sempre a dificuldade me atrai.

.Ninguém escreve impunemente, sem pagar oneroso dízimo ao sentimento de culpa.

.Escrever é, por definição, uma atividade culposa.

.Disse Clarice Lispector que o escritor é marcado por uma espécie de maldição. Que escrever é uma forma de maldição. Creio que ela tinha autoridade para dizê-lo. Acicata-o, diuturnamente, demônios e fantasmas.

.Escrever implica em muitas dificuldades. Como reescrever, por exemplo.

.O universo cascudiano.

Um tema que me apaixonava então? O suicídio de escritores, em particular, como o de Raul Pompéia, que Cascudo admirava e de quem repetia uma sentença de apenas três palavras que resumia a personalidade do escritor. ~Mau, mas meu~. Um suicídio, esse de Pompéia, repercutiu extraordinariamente em sua época, lembrava-se Cascudo. Ele achava curioso que eu me interessasse pelo tema, mas ao mesmo tempo considerava que era um tema que por sua natureza devia interessar particularmente aos jovens e aos velhos. Para mim, então muito jovem ainda e cheio de curiosidade pela vida, o suicídio seria a única espécie de morte que convém a um escritor, por ser um ato cirúrgico, como escrever. Tínhamos uma grande admiração por O Ateneu, que dera forma artística ao espírito inconformista de Pompéia em relação aos fundamentos do poder. Para Cascudo, sua influência posterior sobre os jovens teria sido imensa. Cascudo ainda não havia nascido quando Pompéia se matou em 1895, mas se referia a esse gesto como se dele tivesse de alguma forma participado. Ele me confessou que foi o que o levou a escrever sobre o assunto, tomando Dante Alighieri como tema, por afinal, como em Shakespeare, tudo está presente na Divina Comedia. Cascudo havia publicado havia alguns anos o seu livro sobre a sobrevivência do famoso italiano na tradição popular do Brasil. E algumas vezes, sem citar a fonte, referia-se ao livro que eu só leria muito, apesar do meu interesse por Dante, que eu já havia lido na edição dos Clássicos Jackson, ao tempo em que estudei no Colégio Comercial do Ceará-Mirim, onde havia uma excelente biblioteca a que ninguém recorria.

.Creio que o seu interesse por mim decorria da natureza de minha curiosidade intelectual. Eu o procurara, não para solicitar-lhe prefácio ou apresentação, mas com o intuito de ampliar o raio do meu incipiente conhecimento sobre questões muito distantes do interesse dos jovens da minha idade, como o suicídio e os processos pelos quais um escritor se apodera do conhecimento e o utiliza para compor e nutrir sua obra. Eu acreditava que podia aprender com ele ou aproveitar-me da sua experiência em beneficio de minha futura obra. Sim, porque eu tinha essa convicção de tornar-me escritor, mas não um desses escritores intuitivos que abusam da inspiração. Queria ter uma base, uma referência; queria, de alguma forma, fazer parte de uma tradição.

.Cascudo achava curioso que eu não me interessasse pela chamada arte de vanguarda. Algo me dizia que tais discussões eram apenas perda de tempo e eu não podia desperdiçar justamente o que não é possível reaver, o tempo, sem duvida um dos bens mais preciosos para o escritor que precisa aproveitá-lo da melhor forma, estudando, pesquisando, escrevendo.

.Eu diria que Cascudo dissimulava bem o seu desgosto de Natal, ou seja, dos natalenses que colocavam cardos e pedregulhos em seu caminho. Não falava mal deles, a não ser através daquele curioso recurso de exagerar-lhes os méritos. Conhecendo-os, como não podíamos em sã consciência deixar de conhecê-los, não podíamos deixar de discordar do elogio cascudiano. Uma vez ele expressou o seu desgosto ao poeta Luiz Rabelo, ao lembrar que, tendo recebido uma comenda de uma instituição estrangeira, correu a comunicar a Henrique Castriciano o fato ele, que deve a Cascudo a sua imortalidade, teria comentado, “os italianos são muito generosos…” Esse comentário, proferido talvez sem nenhuma maldade, marcou profundamente Cascudo, que muitos anos depois ainda se lembrava.

.Essa “futura obra” a que tenho me referido era então apenas uma utopia, ou seja, uma meta a ser alcançada. Na verdade, não havia obra nenhuma, apenas o projeto e a disposição de produzi-la, para o que afinal me faltava quase tudo, exceto o desejo de vir a produzi-la, como naquele verso de Drummond, ó vida futura, nos te criaremos… Eu me impus uma meta, segundo o conselho que me dava a minha avó materna, que acreditava em metas a cumprir e na eleição de um foco, pois para ela a dispersão seria, para qualquer um, principalmente para o artista de talento, o principal desafio a vencer. Sem objetivo e sem meta, apesar do talento, não chegamos a lugar nenhum, reiterava. Vá aos poucos, mas seguindo um rumo previamente escolhido, advertia-me. Se quer escrever, escolha primeiro o gênero, a poesia ou a prosa. Está na Bíblia, ninguém serve a dois senhores.

.A princípio me deixei enredar pelo mistério do teatro. Queria ser dramaturgo, e, impulsionado por esse desejo, estudei a fundo o teatro universal, começando pelo teatro grego, o teatro elisabetano, o teatro clássico francês, italiano, russo, de par com o No japonês.

.Biblioteca sortida e de qualidade a do Colégio Comercial do Ceará-Mirim, que frequentei quando ali fiz o primeiro ano ginasial. Impecavelmente conservada, creio que fui um dos primeiros e talvez o único aluno a freuüentá-la, todas as noites, antes e durante os intervalos de aulas. Em poucos meses devorei os Clássicos Jackson, que resumiam toda uma tradição em prosa e verso. Ali descobri alguns autores como José Conde com a sua comédia humana de sua Caruaru natal, e o mossoroense Milton Pedrosa que me agradou enormemente. A maioria dos livros dessa biblioteca, tão cuidadosamente constituída, estavam em desuso e não poucas vezes com as suas páginas ainda lacradas, o que atestava o desinteresse dos meus colegas pela leitura. Realmente cheguei a ser ridicularizada por muitos deles por causa do meu gosto pela leitura, que atribuía-se ao fato de ter sido eu criado por minha avó e, portanto, muito mimado e estragado por ela. Já o Ginásio Dr. Pedro Amorim, no Açu, não tinha biblioteca. Mas os alunos eram mais politizados que os meus colegas do Ceará-Mirim. Lá, participei da diretoria do grêmio estudantil e fiz parte da equipe de um jornal que não prosperou, mas chegou a ter uma sede, onde nos reuníamos para conversar e planejar ações que nunca se transformaram se concretizaram.

.Meu horror antigo e sempre presente às palavras desprovidas de pensamentos.

.A vontade de agir, sempre frustrada, em mim, pelas más escolhas.

.Minha simpatia pelos fracassados.

.O didatismo do fracasso. O êxito, por definição, não nos ensina nada.

.Encontro com Daniel Galera, na Feira do Livro de Mossoró, na companhia de Rodrigo Levino. Um autor jovem e cônscio do que cria. [Tema a desenvolver posteriormente].

[…]

Creio que nascia assim, ainda envolto em brumas mitológicas, o projeto de escrever páginas que pudessem consignar, a um tempo, essa experiência nascida do entusiasmo do meu sangue juvenil

Impelido a escolher entre as realizações e o prazer, comecei a trilhar o difícil caminho em direção ao estranho destino dos artistas — um amálgama feito de insatisfação e descontentamento, de duros sofrimentos e solitários embates, que é o pedágio que a arte nos cobra em troca de uma vida mais intensa e devoradora.

[…]

.Um escritor é alguém que se sente intrinsecamente culpado. Por isso, escreve.

.Escrever como uma forma de remissão.

[…]

.A magia linear, cromática, do pintor.

A indecomponível unidade do talento, forjando a obra, esforço e acontecimento.

Um ato irreprimível criando uma realidade nova. Uma particular capacidade de interpretar as formas criadas, provenientes de formas.

Um processo de negação da morte.

A obra profunda onde tudo ganha forma, ritmo, simetria.

Os processos controlados do artista. Cadência e medida para o poeta.

O elemento mágico, na obra – a dor, o drama, a piedade. Compreensão e rigor da forma.

.O artista consciente equivale ao artista que não se satisfaz. Máxima que aprendeu, ainda muito jovem, observando e voltando a observar vezes sem conta, norteia-o, agora, ao pintar essas formas que evocam os verdes e tremulantes canaviais de seu chão nativo.

.Todo mundo deseja compreender a pintura, queixava-se Picasso, antes de ir viver em seu castelo de Vauvernagues.

.Embriaguez do movimento e da liberdade.

.Jomar Jackson. O academicismo desembocando na cópia.

.O artista — segundo Nietzsche –, um legionário do instante -, em busca da totalidade que a arte proporciona. Esbarra no flagrante contraste entre intenções e obra etc. A sugestão metamorfoseando-se em forma, trabalhada pelo artista que se beneficia de um saber acumulado e do conhecimento posterior ao fato. Tudo que sabemos é superior ao que ignoramos.

.Nada, em resumo, finaliza.

.Mirlo dispõe sua paleta sobre a tela. Ao seu lado, entre as páginas de um livro, dormita a siamesa possessiva, dominadora, brincalhona, astuciosa, enfadada com o tédio dos dias em que nada acontece. Interrompido o trabalho, a gata queda-se espichada sobre a mesa, como alteza soberana […].

Fustiga-o o desejo de criar uma obra que engendre o futuro. E transfere para o conjunto de sua obra o empenho de perenidade que se expressa numa particular capacidade de interpretar as formas criadas.

.Delacroix viu a natureza como uma dicionário. Ora, a arte moderna tem a obra menos em conta de um objeto do que de uma assinatura. Arte e grife. Morte da pintura, culminando com o pós-modernismo dos anos oitenta.

.O martelo do joalheiro esmigalha a ostra defeituosa. Gaetán Picon.

.O crítico é um admirador ativo. Um leitor que reflete e escreve sobre as obras que ama.

.Na página, a supressão das idéias intermediárias, compondo a sua arte de escrever.

[…]

.Escrever.

.Escrever pressupõe uma fome de leitura. Dos livros. Dos fatos. Da vida.

.Só muito tardiamente descobri minha verdadeira vocação – a sala de aula, a cátedra.

.O fracasso é mais instrutivo que o êxito.

.Aprendemos mais com o fracasso do que com o sucesso.

.O êxito não acrescenta nada ás experiências de um escritor cônscio do que cria. Pode até constituir em atraso, ou em perda de tempo, para a obra.

.Ler pressupõe analisar e interpretar. Como uma atividade posterior à escrita, exige-nos mais que mera fruição, embora o prazer deva estar associado à leitura.

Disse Borges que não devemos ler sem prazer, que devemos interromper a leitura quando somos tomados pelo tédio e o aborrecimento.

.A auto-satisfação deve ser evitada pelo escritor.

.Releio-me, apenas, para corrigir-me.

.Não encontro satisfação nos meus livros. Escrevo-os, porque somente eu poderia escrevê-los.

.Não me sinto satisfeito quando concluo uma página. Sinto, sim, especialmente, a satisfação que o cansaço proporciona. Creio ser esta a paga do escritor. A qualidade do seu cansaço, semelhante ao do homem que amanha e lavra a terra.

.Um artista é alguém que, podendo ter êxito, […] opta por abrir mão de todas as vantagens que, vulgarmente, o êxito proporciona.

.A solidão entra na composição do trabalho honesto.

.Disse Marguerite Yourcenar que é desvantajoso para o escritor morrer antes dos quarenta anos. Realmente, nessa idade, atingimos forçosamente um patamar que nos proporciona uma ampla visão do que somos e do que não seremos jamais. Contudo, continuo achando com os gregos que, aqueles a quem os deuses amam, morrem jovens. Viver envilece.

.O inferno concerne à lucidez.

.Um escritor é alguém que sabe que o inferno existe.

.Há muitos infernos, mas creio que o da criação supera os demais em provações e tormentos.

.Não creio que haja algo mais interessante para se fazer, nesta vida, do que arte.

.Apesar de sua curta duração, creio que apenas um ano, o Grupo Cobra escreveu uma página da cultura da cidade. Reuniu, sem constituir uma capelinha, artistas das mais diversas tendências, que, em conjunto e individualmente, afirmaram a vocação de Natal para o cosmopolitismo. E tudo isso sem queimar livros, sem fundamentalismo e sem exigir submissão a credos.

.Como Walmir Ayala, tive a ambição de colecionar pessoas raras. Por isso, sempre busquei a companhia dos melhores.

.O jornalismo – ou melhor, a entrevista – ensinou-me a ouvir e a ter paciência.

.A paciência é das mais preciosas virtudes. E, às vezes, me falta!

.Tenho, frequentemente, a ousadia dos tímidos.

.O Padre José Luis viu Natal como uma madrasta ingrata. Uma vez, conversando com ele em seu quarto de hotel, ele me disse fosse embora quanto antes, para qualquer lugar, desde que a milhares quilômetros de Natal. E justificou: Natal é uma madrasta ingrata. Se ficar aqui, jamais o seu talento será devidamente reconhecido. Aqui as pessoas gastam duzentos para impedir que ganhemos vinte. Penso que não era uma mera boutade.

.Hoje, busco apenas o silêncio e um pouco de obscuridade. Seria bom morrer anonimamente, em João Pessoa, enterrado no Cemitério da Boa Sentença, uma denominação justa e adequada para a casa dos mortos. A necrópole etc.

.Sempre a dificuldade me atrai.

.Ninguém escreve impunemente, sem pagar oneroso dízimo ao sentimento de culpa.

.Escrever é, por definição, uma atividade culposa.

.Disse Clarice Lispector que o escritor é marcado por uma espécie de maldição. Que escrever é uma forma de maldição. Creio que ela tinha autoridade para dizê-lo. Acicata-o demônios e fantasmas, diuturnamente.

.Escrever implica em dificuldades. Como reescrever.

.Ao pintor, reescrever as formas –, estabelecer correspondências etc. Magia linear. Cromática […]. A arte moderna tem a obra menos em conta de um objeto do que de uma assinatura.   Uma particular capacidade de interpretar as formas criadas. A obra profunda. Nela tudo ganha forma.

.Formas procedentes de formas. Ritmo. Simetria. Os processos controlados do artista. Cadência. Medida.

.Numa página, a supressão das idéias intermediárias.

Todo mundo deseja compreender a pintura, queixa-se Picasso.

A obra irredutível do pintor. A obra profunda – tudo nela ganha forma.

O artista consciente equivale ao artista que não se satisfaz.

Jomar Jackson. O academicismo desemboca na cópia etc.

.[…]

.Numa idade sombria e inquietante, temerário estrangeiro na terra dos homens, eu sentia o remorso das horas perdidas quando, vagando à noite pelas ruas desertas de minha cidade, pensava na escolha solene e irremissível que me dirigia – de tornar-me escritor –, persuadido de que, pensando e escrevendo, me tornaria diferente dos muitos que se rendiam ao convencionalismo e à habitual cotidianidade. Era o segredo que sabe ter o adolescente, vivendo em seu mundo próprio, fustigado e consumido pelas incertezas do dia a dia.

Uma idade muito próxima daquela em que a minha avó me levara ao Grande Hotel para conhecer Glauce Rocha, que quis saber o que eu pretendia ser na vida e eu lhe respondi, num rompante de tímido, “escritor ou nada”, resposta que a surpreendera e que me fez merecedor de dois beijos da grande dama do teatro, que então se apresentava no Theatro Alberto Maranhão.

Notei sobre sua cama exemplares dos jornais “Tribuna do Norte” e “Diário de Natal” e dois ou três livros sobre uma mesa. “Escritor ou nada”, repetia Glauce, numa voz rouca e lenta, sem disfarçar o seu aturdimento diante da convicção de um jovem inexperiente. Ao nos despedirmos ela me presenteou com um pequeno volume encadernado em couro, contendo em letras de ouro o nome de Vauvernagues, cujas máximas deliciavam a minha avó. Antes de entregá-lo ela rabiscou rapidamente uma dedicatória ao seu “valente escritor natalense…”

Empolgado pelos sentidos e ansioso por agir e realizar, via-me retratado especialmente em dois personagens de Thomas Mann, que eu adotara como modelo de escritor cônscio do que cria, desde que começara a ler sua obra que me fora emprestada por Dona Maria Eugênia [Maceira Montenegro], cuja biblioteca quase infinita me proporcionara o acesso a um mundo novo de idéias e experiência feito.

Desde os meus catorze anos eu já intuíra misteriosamente que os meus modelos seriam diversos daqueles que satisfaziam ao gosto literário dos meus companheiros com veleidades literárias comezinhas e rotineiras. Embora ainda uma criança, em tudo ignorante da vida, horrorizava-me toda a forma de vulgaridade e de conformismo que via expandir-se entre meus colegas de escola que também sonhavam com as letras, sem perceberem minimamente o grau de responsabilidade e de compromisso que o ato de escrever acarreta para quem se atreve a fazê-lo. Tudo isso eu percebia de maneira confusa, subjetiva, misteriosa, sem explicações.

Aos dezesseis ou dezessete anos, dominado por uma espécie de obstinação viril que o obstáculo redobra, empenhava-me em ser diferente dos muitos que conformavam sua maneira de viver e pensar com o exemplo comum. Buscava, pois, o raro, o difícil, o contraditório, o que jaz sob camadas profundas, uma coisa ou algo enfim que não se deixa usufruir por todo mundo. Por isso, ao mesmo tempo em que cortejava a solidão, refletia numas palavras que lera em Tonio Kroger, tornadas como que para mim uma espécie de credo estético. Seria preciso morrer para o mundo, eu repetia em silêncio, para afinal tornar-me um perfeito criador… Mas, como?

Incerto quanto a melhor forma de alcançar o futuro, sabia o que não desejava, como desperdiçar o Tempo, o bem mais precioso e irrecuperável, quando mal aproveitado em gratificações banais. Ao mesmo tempo intuía que de alguma forma imperceptível e sutil era trabalhado por ele. Fascinava-me, por isso mesmo, a metafísica, a busca da essência da vida, a vertigem do nada, o gosto pelo existencialismo. Quantos tormentos, em resumo, para tão curta vida.

 

Em minha adolescência inquieta e fatigada, queria, pois, ser Hamlet, Hans Haller, Raskolnikov, Vinteuil, Stephen Dedalus, Julien Sorel, o escritor inominado de “Almas Mortas”, presciente da inutilidade de tudo e, no entanto, fiel ao dever de construir uma justificativa para a própria existência… Uma obra enfim que me justificasse no futuro… Em síntese, a prova concreta de que aproveitara bem o meu tempo. Um artista em processo, ávido de experiências, eu ignorava ainda que para descrever um crepúsculo, conforme a lição prodigada por Borges que eu ainda não lera, faz-se necessário ver mil crepúsculos e refletir sobre eles.

[…]

A máscara facial da atriz, comprida e eqüina, recoberta de uma espessa camada de pancake que lhe dava a estranha aparência de uma divindade. Muito branca, de ossatura sólida e bem proporcionada, Glauce veste elegantemente saia e blusa em tons pastéis. Em torno do pescoço de cisne um longo colar de pérolas cinzas. O cabelo bem penteado, desce-lhe sobre os ombros. Não tem a afetação das atrizes, antes passaria por uma burguesa culta, empenhada em dispensar uma boa acolhida nos limites de um apartamento de hotel.

Glauce revela que a vida de uma atriz é feita de dificuldades, ainda mais no Brasil, onde o teatro ainda não recebe o tratamento devido pelo governo, que, no entanto, nos últimos anos, tem investido mais, apesar do regime de exceção. Contudo o que mais a preocupa é que o povo não ganha o suficiente para comer e, portanto, não tem recursos para o teatro, que passa a ser um item de luxo. Ouço-a muito atentamente e cheio de curiosidade, querendo saber mais e mais. Encantada com o nosso teatro, mostra-se preocupada, por estar ligeiramente rouca e tendo de sustentar a atenção do publico, sozinha, durante pouco mais de uma hora.

 

 

Em destaque, Franklin Jorge em sua mesa de trabalho, em Mossoró, à Rua Prof. Manoel João 239, Boa Vista; acima, numa cafeteria, um de seus ambientes prediletos.