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O passado é uma surpresa

Colaborador de Navegos, musico e pedagogo abre um velho caderno de anotações e nele descobre a presença de Andre, aluno que seria problema se não soubesse transmutar rebeldia em desenhos.

´*Cleudo Freire

Entre o sono e o sonho

entre mim e o que em mim

é o quem eu me suponho

corre um rio sem fim

Fernando Pessoa

 

O Passado é Uma Surpresa

Entre o sono e o sonho

entre mim e o que em mim

é o quem eu me suponho

corre um rio sem fim

Fernando Pessoa

Hoje, ainda entre o sono e o sonho, abri um velho caderno de anotações da rotina de sala de aula e em meio a sorrisos e lágrimas reencontrei tantos alunos queridos, relembrei de tantos conflitos e superações, decepções, promessas, sucessos: saudade! Surpreso, revi carinhas inesquecíveis com expressões que valem mais do que mil contos, pois me diziam mais, muito mais do que mil palavras, num cantinho de olhar, num sorriso pequeno ou largo, em olhos baixos ou altivos, penetrantes ou escorregadios, que sempre me traduziam os seus dias me impondo trilhar caminhos, caminhos possíveis, mas desafiadores e assim, cheios de muitos silêncios, nossos diálogos se prolongavam, se prolongaram e pelo jeito se prolongam.

Foi assim que hoje eu comecei o dia, abrindo espaço para a coragem de ver o que há de novo no que eu já conhecia. Sinceramente, não estava com grandes expectativas, até porque eventos passados vão se amontoando em alguma caixa da memória e tendem a se confundir uns com os outros, restando sensações ao longo do corpo que muitas vezes sequer identificamos a origem. Mas o caderno de anotações, ah o caderno de anotações é incrível, ele tem vida! É a reencarnação das árvores e redime o homem do mal do desmatamento assim como os livros, não tenho dúvidas e hoje acho mesmo que ideias são cheias de clorofila, são verdejantes, humedecidas e sobrevivem do diálogo entre o gás carbônico e o oxigênio.

Daquele amontoado, retirei o caso de um garoto por nome André, mas tudo começou na sala dos professores. O verão ameaçava um calor jamais visto e ali entre abanos e suspiros, cafés, bolachas, futricas e gargalhadas, meus colegas deram uma pausa para me interromper a observação, um deles falou: teu ano vai começar com tudo! Não estava ouvindo? Você vai começar na turma de um aluno que tira a paciência de qualquer um, se prepare professor que ele vai aprontar, ainda mais sabendo que você é novo aqui… – Boa sorte! Hahahaha, vai precisar! – se cuida professor! – Não deixa ele te dominar! – Não faz nada que chame a atenção dele! -Haja paciência! – Coragem!

Foi debaixo dessa chuva de frases de boas vindas que eu iniciei minha lida na Educação. Por fora aparentando tranquilidade, por dentro era só apreensão. A verdade é que era tudo muito novo, e tão assustador quanto encorajador, por isso, não desisti segundos antes de entrar naquela sala.  Ao entrar, achei tudo muito organizado, os alunos todos sentados, sala limpa, com uma mistura de cheiro de casa recém pintada, livro novo, gel dental, perfume e detergente. Tudo parecia bem diferente do que os meus colegas haviam dito, tanto, cheguei a pensar que seria uma espécie de trote com novos professores. Até que depois de me apresentar e tentar o primeiro contato com os 35 desconhecidos, um deles me interrompeu para dizer: ei professor, vou logo avisando que eu não faço nada e acho melhor não ficar no meu caminho, sei que já falaram de mim pro senhor, então já sabe como é!

Essa foi a apresentação do garoto André, moreno, sorriso largo e brilhante, sarcasticamente encantador. Realmente, durante a aula, fez de tudo para “tirar minha paciência”. Isso se repetiu por algumas semanas, quando um dia, eu estava andando pela sala enquanto observava os estudantes trabalhando, me surpreendi ao ver que o caderno de André, era um caderno de desenhos, poxa, como ele desenhava bem! Fiquei realmente encantado e mais uma vez, constatei naquele momento que os cadernos podem ter alma e de fato redimem o homem. Não demorei e imediatamente o propus ser meu ajudante para desenhos na lousa, já que eu não tenho o menor talento para desenhar. O sorriso dele foi um belo sim, cheio de luz. Desde aquele dia, eu e André passamos de ameaça recíproca a companheirismo.

Então, tive de deixar essa escola e mais tarde o encontrei adulto, caminhando pela rua e só o reconheci porque abriu para mim o mesmo sim daquele dia surpreendente do passado e me disse que agora, cursava economia.

Despediu-se e abriu um belo “grato professor!”