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O outro nome da poesia [1-3]

Já se disse que a poesia, como a felicidade, acontece ou vem de muito longe, talvez da infância. Ler Francisco Alexsandro Soares Alves, poeta ainda inédito em livro, é a um tempo honra e distinção, pois significa conectarmo-nos com o próprio mistério da Poesia. Autor de Pulsão, que tive o privilégio de ler em primeira mão, Navegos passa a publicar a partir de hoje, em capítulos, a longa entrevista que nos concedeu como uma dádiva suprema. que há de surpreender e encantar o leitor.

*Franklin Jorge

Como descobriu a poesia?

Por acaso. Eu sempre gostei de livros. As minhas primeiras leituras foram de uma coleção de livros, em quatro volumes, de contos de fadas chamada Meu Amiguinho, que continha contos como As fadas, Os músicos de Bremen, O pequeno polegar e A rainha da neve, entre outros. Eu era fascinado por esse livro. Ao mesmo tempo que as coisas eram mágicas, também eram aterradoras. No entanto, a minha imaginação infantil não percebeu o horror por trás deles, ao menos não conscientemente, isto ficou para mais tarde. Porém me fascinava e eu sempre relia, As fadas, Os músicos de Bremen e sobretudo A rainha da neve. Meu início com a literatura começou assim, aos 8 anos. A poesia veio mais tarde, e como disse, por acaso. Eu tinha 15 anos e estava na biblioteca municipal, de Riachuelo, procurando prosa. Então encontrei um livro Poesias Completas de Machado de Assis. Bem, eu nem sabia que ele havia escrito poesia, pois encontrava sempre seus romances e contos, e mesmo hoje eu encontro quem não conhece este lado do romancista. Então resolvi pegar aquele volume inesperado. Foi uma leitura diferente em qualquer aspecto. Eu já estava habituado com os parágrafos da prosa machadiana e seus versos me pareceram um pouco indiferentes em relação a sua prosa, sobretudo a da fase realista. Não voltei à poesia até o ano seguinte.

Quando ingressei no Ensino Médio, aos 16 anos, graças às excelentes aulas de gramática e literatura, aulas realmente de português, tomei conhecimento da poesia de forma mais abrangente. E isto se deu de acordo com o ano letivo. Porque eu já tinha minhas prioridades na literatura, e naquela época eu me acompanhava de Oscar Wilde, Poe, Kafka, livros sobre ópera e havia descoberto Nietzsche, via Wagner. Então a poesia, ela foi entrando à medida que eu tomava conhecimento através da gramática de Douglas Tufano. Aos poucos eu fui conhecendo o cancioneiro geral, Gregório de Matos, os árcades, os românticos, os simbolistas, os parnasianos e os modernistas. Aí sim minha paixão pela poesia nasceu. Nesse primeiro momento o Boca do Inferno e os simbolistas chamaram muito mais a minha atenção do que os outros. Talvez pelo pendor religioso de meu espírito, que aos poucos, bem aos poucos, fui abandonando. Porém a arte permanece, sempre. E sobretudo o que permaneceu desse meu contato com a poesia foi o soneto. Eu sempre amei, e amo, os sonetistas.

O que o inspira?

Eu lembro que Verlaine proclamou Antes de tudo a música. Pois é. A música me inspira. Porém a música, para me inspirar, ela precisa criar cenas em minha mente. A música é teatro do infinito, do invisível. É um grande palco de solidão e de abandono. Destes estados de alma que fazem brotar a inspiração. A música quando toma conta de nosso interior, quando o preenche no tempo, se transforma. Há elementos em nosso ser que não acessamos de forma racional. O sonho é um caminho. A música é outro. Porém nós precisamos racionalizar o irracional, domar a embriaguez. A arte é isso. É a embriaguez compreendida, racionalizada, destruída… É maravilhoso vermos esse processo nos Mestres-cantores de Nuremberg, de Wagner. Por isso que Heidegger afirma, em sua compreensão de Nietzsche, que a arte é a maior expressão da Vontade de Poder. O artista não é um homem ou uma mulher comuns. Porque lidamos com forças destrutivas e construtivas ao mesmo tempo. Criar é um ato de guerra. O ato de inspiração é o início de uma batalha com demônios, que o artista vence quando cria, quando transpira…

Para que serve a poesia?

Eu diria de uma outra maneira, para que serve a arte? Em termos práticos, para muito pouco. Poesia, literatura e música, para quase nada. Arquitetura e artes plásticas, constroem e decoram. Porém, as outras artes, quando são grandes, para nada prático serve. É uma atividade do ócio e para o ócio. São manifestações concretas do irracional que se completam em si mesmas. A arte existe para ser arte i.e., para promover estados estéticos, contemplação e embriaguez, que gerarão novas obras de arte. E em tempos de rapidez e de internet, onde tudo se diminui, a grande arte perdeu sua relevância. As pessoas encontraram na internet a fugacidade, a rapidez e a frivolidade – melhor dizendo, transferiram. Em cenários assim, perde a grande arte e ganha a indústria do entretenimento. A grande arte sempre será avessa à rapidez. Da mesma forma a grande poesia. Bons vinhos não são tomados com rapidez, e bons vinhos nada são, senão bons vinhos.

É uma pena que no Brasil a arte nunca tenha podido ser arte. Não podemos culpar o povo, por não procurar e saber apreciar o bom vinho, quando nem mesmo tem o feijão com arroz.

Porém a arte não pode ser feijão com arroz em nenhum aspecto. É claro que há canções de protestos, filmes de conteúdo político ou sociológico, poesias que flertam com a filosofia e com a política, e que são grandes obras de arte. Eu lembro aqui do cinema novo de Glauber Rocha, de certos filmes de Visconti ou do neorrealismo de De Sica, e isto é uma maneira diferente de entender o significado e a importância da arte e que o cinema se apropriou como nenhuma outra arte o fez, ou faz.

Passar uma mensagem. É uma maneira diferente de entender o papel da arte. Não creio que diminua a arte, apenas modifica a maneira como a arte chega em nós. E em determinados contextos é o que se tem mesmo.

No Brasil, nos anos 60 e 70, a música popular brasileira caminhava entre dois lados opostos. E gosto de pensar este momento da música para exemplificar a serventia da arte. De um lado tínhamos Chico Buarque com suas canções de protestos belíssimas como Angélica, Cálice ou Construção; e do outro a bossa nova, profunda e intimista, de João Gilberto, por exemplo. São maneiras opostas de sentir e entender para que serve a arte. Há valores positivos em ambos. Há problemas estéticos no primeiro; há uma apatia social no segundo.

Eu também penso no público que vai ter acesso à arte. Isso pode dizer algo também. Quem este é público? Evidente que, se pensarmos no público, a mensagem acaba tomando mais corpo do que qualquer outro elemento.

O anel dos nibelungos, de Wagner, abarca uma infinidade de interpretações. Wagner a encenou como uma epopeia dos mitos germânicos, Levi-Strauss a compreendia como uma história de uma família incestuosa; Patrice Chéreau, via Bernard Shaw, em Bayreuth (1976) a entendeu como um elogio ao socialismo; para Harry Kupfer, em Bayreuth (1988), é um conto sobre a apropriação da natureza pelo capitalismo. Porém para quê servem todas estas leituras? O público permanece o mesmo…

Crê que livros nascem de livros?

Sem dúvida. O único livro que se escreve sem uma genealogia literária é o diário pessoal de cada um. Antes de ser escritor, o homem precisa ser leitor. E precisa de um entendimento do valor e do significado de criar. O artista precisa ser esteta. Precisa saber onde quer chegar com o que cria e como sua criação dialoga com seus antecessores, e como sua criação rompe com seus antecessores. E sobretudo, quem são seus antecessores. Os mestres de cada um. Arte não é um devaneio sem controle. É razão. A poesia em particular precisa ainda mais de criadores que sejam mais intelectuais e racionais do que sentimentais, porque o poeta não pode se perder em sua poesia. O poeta precisa saber navegar. Precisa entender que sua escrita é uma embarcação. E quem está no comando é o poeta e não os seus sentimentos! Navegar é preciso, e esta precisão é marcada pelos mestres e suas grandes obras. Eu não acredito em poeta, ou artista de forma geral, que não seja um grande leitor. Colocar sentimento para fora não é poesia, é diário ou divã.

O artista não tem direito de caminhar no rasteiro, no senso comum. Porém para que o mesmo se eleve, precisa de livros. Eu penso que se o indivíduo só lê autoajuda, ele não deveria pensar que pode ser artista, por exemplo. A arte não pode ser produzida por qualquer um.

[Continua amanhã]