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Não há página em branco diante de uma criança

Em texto especialmente escrito para Navegos, professora e pesquisadora vê a página em branco como passaporte para o mundo da imaginação.

 *Vanina Sigrist – Doutora em Letras e apresentadora do Canal Arte na Casa

Não há página em branco que resista à investida de uma criança. Não mesmo. Sua imaginação é sempre vencedora. Nós, adultos, é que inventamos todos os bloqueios para os quais depois perdemos anos de nossas vidas. Vergonha de fazer o que nos dá vontade, medo dos julgamentos externos, obrigação de seguir padrões, todas essas castrações emocionais saltam do nosso íntimo quando decidimos escrever – por prazer, por dor ou por profissão – fazendo com que o papel ou a tela vazia vire um trauma. Só trocamos nosso pai, nossa vizinha, nosso tio impertinente pelo leitor, a assombração de qualquer poeta com desejo de dizer algo ao mundo (a começar por si mesmo, seu leitor mais exigente).

Eu mesma já vivi esse dilema muitas vezes, e consegui de certa forma dissolvê-lo quando me tornei mãe, o que significa, no caso das letras, voltar a ser criança. Com um companheiro para minhas leituras e a escolha de títulos que seguissem outros critérios de público, soltei-me como não fazia há anos, e finalmente escrevi histórias que transbordassem nossos desejos, nossa fantasia, nossas preferências. Fizemos na literatura o que meu filho e todas as outras crianças, quando incentivadas, fazem em casa ou nas aulas de artes: preenchem a página em branco com avidez e entusiasmo. E o melhor de tudo, ao final sentem orgulho do resultado porque se espelham nele e ali se reconhecem, garantindo a atenção que almejam dos adultos ao redor.

A página em branco, nessa nossa parceria, era facilmente derrotada pelas nossas personagens cheias de pelos, asas, antenas, capacetes e radares, e pelas nossas aventuras inverossímeis. Mas que nos davam imenso prazer. Esse furor evidentemente passa, e resta, no dia seguinte à diversão, a necessidade de reler, corrigir, trocar palavras, lapidar, inverter parágrafos, enfim. Esse labor irrequieto e cansativo faz parte do jogo. Quem não está disposto que não escreva.

Escrever é esmerar. Nenhum bom verso, canção ou conto sai de um só fluxo perfeito (a menos que já estivesse fermentando há um tempo no âmago do escritor ou da escritora, perseguindo seus sonhos ou materializando alguma iluminação extraordinária). Mas a página, assim, já não está mais em branco. Há ali matéria-prima para uma boa caminhada.

Da maternidade e da experiência com a escrita de histórias infantis, tão contrastante em relação aos meus textos críticos como professora e pesquisadora, trago esta lição: a página em branco não deve ser vista como inimiga, como uma aposta de tudo ou nada que nos deixa ansiosos, nos tira o sono, nos oprime, nos reivindica nossos melhores anos. Longe disso. Ela é um passaporte. É um trajeto a ser percorrido, e sempre em companhia – de leitores, amigos, palpitadores, revisores e tradutores.

Se aliviarmos a angústia da escrita, que em muito equivale à angústia generalizada da vida adulta e todas as suas cobranças sufocantes, é a criança que virá, a que já fomos, que já aprendeu as letras e os contornos caligráficos, que já estampou páginas e páginas de modo despudorado, sem indecisões e conflitos internos, e ela fará com que aquele dizer algo ao mundo seja mais leve do que se imagina.