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Liberdade em Dom Quixote

Autor de Jogos florais e A vida conjugal, suas principais obras, escritor mexicano que se aborrecia com tudo o que não diz respeito à literatura, distinguido com o Prêmio Cervantes, considerado o Nobel de língua espanhola, presta tributo ao chamado “cavaleiro de triste figura”.

*Sergio Pitol

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Um dos eixos fundamentais de Dom Quixote é a tensão entre a loucura e a sanidade. Na primeira parte do romance suas aventuras terminam em desastres, se perdem a cada momento, em cada aventura o corpo de Dom Quixote jaz quebrado, espancado, chutado, com ossos e dentes quebrados, ou submerso em poças de sangue. Esses acontecimentos fizeram rir seus contemporâneos, que liam o livro por diversão. O cômico está ali aparente, mas no subsolo da linguagem esconde-se o espelho de uma época inclemente, uma ânsia de liberdade, justiça, conhecimento, harmonia.

Cervantes foi desde jovem leitor e admirador de Erasmo, por isso consegue intuir a superioridade de uma vida interior que acabará por derrotar o vazio dos cultos exteriores. Transforme a loucura em uma variante da liberdade. A liberdade que define em Dom Quixote: “A liberdade, Sancho, é uma das dádivas mais preciosas que os céus deram aos homens; com ela, os tesouros que a terra guarda e o mar não podem ser igualados, tanto pela liberdade como pela honra, a vida pode e deve ser aventurada, e, ao contrário, o cativeiro é o maior mal que pode vir ao homem.

O autor se permite algumas liberdades que poucos ousariam. Em um discurso, um dos mais soberbos do livro, proferido a um grupo de pastores totalmente ignorantes, ele compara os tempos passados ​​com os detestáveis ​​em que viviam, onde o mundo foi pervertido, manchado e corrompido. É um discurso de encorajamento humanista, renascentista, libertário. Todos vocês o conhecem porque ele foi citado muitas vezes. Começa assim: “Feliz idade e felizes séculos são aqueles a quem os antigos deram o nome de douramento, e não porque neles o ouro, que nesta nossa idade do ferro é tão estimada, foi alcançado naquele tempo afortunado sem nenhum cansaço, mas porque então os que moravam nela ignoraram essas duas palavras, sua e minha”.

E no corpo do monólogo está: “Tudo então era paz, toda amizade, toda harmonia… um desvio artificial das palavras para torná-las mais caras. Não havia fraude, engano ou malícia misturada com verdade e simplicidade. A justiça estava em seus próprios termos, sem ousar perturbar ou ofender os favorecidos e os interessados, que agora tanto a minam, perturbam e perseguem. A lei da renda ainda não havia se firmado no entendimento do juiz, pois então não havia necessidade de julgar nem de quem era julgado…

E agora, nestes nossos detestáveis ​​séculos, ninguém tem certeza. Para cuja segurança, à medida que o tempo passava e a malícia crescia mais, foi instituída a ordem dos cavaleiros andantes, para defender as donzelas, proteger as viúvas e ajudar os órfãos e os necessitados. Sou desta ordem, irmãos pastores de cabras, a quem agradeço o divertimento e a boa acolhida que me dão a mim e ao meu escudeiro. Que, embora por lei natural todos os que vivem sejam obrigados a favorecer os cavaleiros andantes, ainda assim, sabendo que sem conhecer esta obrigação me acolheste e me entregaste, é razão que, com a vontade de mim possível, agradeço-te a tua.”

Exceto pelas últimas nove linhas absurdas e alegres que descem para celebrar a ordem dos cavaleiros andantes, a lição de Dom Quixote seria quase um fragmento de A Cidade do Sol, a utopia de Campanella, que, por escrevê-la, aprisionou por vários anos, atormentando-o até executá-lo nas prisões da Inquisição.

O capítulo em que Sancho Pança encontra Ricote, o mouro, que relata todos os sofrimentos dele e de sua família no exterior devido ao decreto do rei de banir centenas de milhares de sua raça é o mais ousado de toda a obra. Thomas Mann surpreendeu-se com a coragem de Cervantes ao abordar esta questão, então muito recente, e que no romance até se permitiu falar em “liberdade de consciência”.

Sergio Pitol

Discurso na recepção do Prêmio Cervantes

 

Não há história nacional que não tenha sucumbido em alguns períodos a essa lepra chamada intolerância; em outros, esse mal é endêmico e até permanente. Parece que foi um mecanismo do diabo para que as criaturas deste mundo não pudessem coexistir em harmonia. É um eco tribal que sobreviveu a todas as transformações sociais. Às vezes ele exibe seu poder com orgulho e insolência; outros, ele se esconde, submerge, se disfarça com atributos que não lhe pertencem, esperando o momento de sair para a rua.

A história da humanidade é uma história de intolerâncias, embora, com o tempo, tudo se torne mais complexo. As armas são mais sofisticadas, mais eficazes são os meios para detectar o inimigo. No mundo, os millennials estão em ascensão, assim como as aberrações contra-reformistas.

Nem tudo foi um desastre. Felizmente, diante da intolerância irracional dos violentos e seus capangas, podemos estabelecer esperança. Basta lembrar que em tempos tão ingratos como este, e ainda piores, existiram mentes luminosas, que escolheram a tolerância como única e última forma de alcançar a harmonia. Seus nomes encheriam páginas inteiras, mas hoje me contento em citar alguns memoráveis: Erasmus, em Ghent; José Luis Vives, Miguel de Cervantes, os irmãos Valdés, na Espanha; Montaigne, na França; John Locke, Isaiah Berlin, FM Forster, na Inglaterra; José María Luis Mora, no México; Emerson, Twain, nos Estados Unidos; Norberto Bobbio, na Itália.

O intolerante detesta a livre troca de ideias. Sua herança intelectual consiste em algumas afirmações que ele tenta impor aos outros. Move-se em um sistema fechado, onde conceitos e valores estéticos não têm lugar.

Sergio Pitol
Confusão de idiomas
O terceiro personagem

Foto: Sergio Pitol interpretado por Paolo Gasparini