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Jovem poeta estreia sob a égide de valores femininos

Em prefácio ao livro Frutos sagrados, lançado recentemente na Feira da Lua, professora da UERN ressalta a natureza feminina da poesia de Pedro Henrique Farias.

*Karlla Souza

A Poética de Pedro Henrique Farias é feminina. Mas o que quero dizer com feminino, que não está inscrito no gênero do autor? Pode um homem falar do que diz respeito à mulher? Existe algo essencialmente relativo às mulheres que possa autorizar ou caracterizar uma escrita feminina?

Eu poderia marcar este lugar de fala a partir dos arquétipos, dos mitos, da sexualidade, do feminismo, do gênero, das relações culturais, do inconsciente, da espiritualidade, mas tentarei ultrapassar todos esses lugares e, ao mesmo tempo, encontrar algo que fuja dos essencialismos e reducionismos.

A poesia de Pedro é feminina, não porque haja uma diferença marcante em relação à escrita masculina ou ao que convencionamos entender por masculino, mas por um motivo aleatório, arbitrário, ambíguo, que se filia na magia da palavra, no enigma da linguagem, no tom oralizante da escrita, nos sons que tilintam das bordas do texto, nos tons que admitem sussurros e respiração ofegante, nas incertezas e na intimidade desafiadora:

Aguardei-te completamente

sujo e,

na parede defronte,

ouço o tilintar dos pingos.

Chove lá fora.

Cá dentro,

estamos

despidos.

Clarissa Pinkola Estés recupera algumas imagens mitológicas onde a Grande Avó, a mulher sábia[1], assume a tarefa crucial de viver a vida plenamente, de florescer numa estação após a outra, de viver em abundância. Essa mulher mitológica não vive feito as formas dadas, ela surpreende as formas da vida:

Imaginem

uma amante

rolando absorta

à beira-mar.

Ondulações,

castelos d’areia,

conchas,

estrelas [do mar].

Existem muitas formas de sermos banhados com imagens de mulher, metáforas de tudo o que gera a vida, o amor, as ideias e a poesia. Na poética de Pedro surge também a mulher da vida real, despida de sofisticações, aos moldes de Adélia Prado. Então, ela torna a vida cotidiana algo sagrado, porque não há nada sagrado se a vida cotidiana não puder se tornar sagrada. Em suas experiências, o comum não pode ser apenas algo frívolo, não pode ser apenas uma ocupação da mente, pois Alguém que ama a mente/pensa mil vezes antes de falar.

É por isso que há nas próximas páginas uma escrita feminina, porque o seu formato é do verbo desviante, requer treinamento de ouvinte, que assim como a mulher tem que ser escutada, contemplada, e não compreendida:

Todo dia no caminho de casa

uma mosca enorme

faz zum-zum em meus ouvidos, e

a sensação é gigantesca!

Você aceitaria viver todas as variações de suas estações? Você aceitaria as mutações que dizem simplesmente que a vida não pode ser resolvida?  O que o poeta assinala é que estes eventos mutáveis devem ser trabalhados na alma (essa palavra no feminino), e assim, curam/espiritualizam, ensinam:

A mulher me disse que estava sob efeitos

da lunação.

Quem sabe se também estou lunar?

Dançar no caos é

um alento

para quem não tem

escolhas.

Esse tom transbordante, transviante, mutante de sua escrita dá a possibilidade da mulher sair do mito e ajuda-nos a desenterrar as velhas criaturas:

Uma figura franzina

me disse

para fazer

escalda-pés.

Em cada verso

que escrevo

careço

de uma parteira.

A mulher que salta destas páginas, feita-anedótica, a mulher que se contrapõe ao ser que mantém a vida num aquário minúsculo tal um cubo, é a mesma que se faz notar nas palavras que florescem dos espinhos, nas palavras que estão entre a boca e o estômago de uma girafa, nas palavras dos amantes que dizem loucuras, nas palavras anotadas fora da página, nas palavras agarradas aos ramos de arruda.

Como resultado dessas palavras que entorpecem a vida, a poética vai se transformando numa maneira outra de narrar, de contar histórias, de onde surgem imagens de originalidade e narrativas como eventos da alma e não apenas como casos contados:

Do vale de onde vim

nas enchentes

enquanto homens lançam enredados

mulheres lavam e riem.

Desencardidas as roupas

todos nos banhamos

em águas

fluviais.

Ah,, houve

os tempos

de outrora

das lavadeiras.

Essas palavras, como entidades feminis, como entidades feminis, ajudam ao leitor a destruir tudo que constrói barreiras dentro de si, vai passando feito vazante que permite a vida correr, sem medo de deixar as marcas do que a sua alma sabe, ousada e alegre elas seguem seus fluxos, intimidantes, são águas que passam por debaixo das águas, o rio embaixo do rio[2], onde é frio por fora e quente por dentro, onde há prazer na superfície e dor nas entranhas. Mas elas penetram em nosso íntimo sem impor nenhuma condição.