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Dois contos de Abraão Gustavo

Escritor e radialista, radicado em Natal, estreia em Navegos com textos que flagram em poucas palavras o cotidiano.

*Abraão Gustavo

Maylon

Ao terminar o programa no rádio, fui para a casa da minha mãe, como faço todas as terças. Subi as escadas da casa, que estava vazia. Minha mãe estava no trabalho. Fui direto para o banheiro tomar uma ducha e, ao sair assoviando, com a toalha na cintura, encontrei algo peculiar me encarado: era o cachorro pinscher da minha mãe; por um instante eu esqueci que morava mais gente além da minha mãe naquela casa. Ele estava com aquele jeito magricelo, com seus dentinhos pequenos, afiados e ameaçadores, rugindo para mim, e do outro lado havia uma lagartixa bem típica das regiões do Nordeste, cinzenta, com diversas cores escuras que serviam para a camuflagem.

Naquele momento, voltei para o banheiro correndo e fechei a porta. De lá, escutava o latido raivoso do Maylon por baixo da porta. E via as sombras da lagartixa com seu rabo preto e cinzento passando por baixo da porta quase em uma luta épica. Eu pensei: meu Deus, estou ferrado. Vou ficar aqui até a hora que minha mãe chegar do trabalho. Um desespero foi tomando conta de mim.

Não sabia o que fazer. Olhei para o lado, mas só havia shampoos, acima deles uma janela que mal passava um braço, quem dirá uma pessoa. Ao lado estava um rodo de empurrar água. Pensei comigo: se eu bater nesse cachorro, minha mãe vai me matar depois. Se eu correr para o sentido contrário, uma lagartixa me espera. Esqueci de informá-los, mas já eram cinco horas da tarde e dali a vinte minutos minha mãe chegava. Resolvi sentar na privada e pensar no que iria fazer, enquanto o cachorro vorazmente latia para todos os vizinhos ouvir.

O cão satanás devorava a lagartixa às dentadas e calculava me fazer sua próxima vítima. Cada vez mais estava ficando impaciente, e sufocado dentro daquele banheiro, até que tive uma brilhante ideia: sempre que minha mãe falava a palavra “banho”, aquele infeliz corria para sua casinha como se não houvesse o amanhã. Então, resolvi ligar o chuveiro de forma completamente estratégica e calculista, e chamá-lo:

– Maylon, banho!

– Maylon!

– Fiuuu! (assovio).

– Banho, bebê!

De repente parei de ouvir os latidos daquele cachorro maldito e comecei a ouvir a porta abrir. Era minha mãe chegando do trabalho. Apressadamente ela abriu a porta, o cachorro retornou ao meu encontro, ela me viu e disse:

– Abraão, banho!

[2]

Entregador flamenguista

Na rua onde moro, Rua Pastor José Meneses, os entregadores quase sempre fazem a entregas em casas erradas. Certa vez, foi um entregador de água:

– Olha a água!

– Olha a água!

Batia palmas, gritava na casa 54 e nem sinal de uma pessoa para atender. A vizinhança acordava, mas o bendito da casa não atendia de jeito nenhum. De tanto fazer barulho, a vizinha da 53 acordou, de camisola, com o cabelo despenteado, cheia de remelas nos olhos:

– É aqui, meu amigo, a água. Quanto deu?

Quase sempre aconteciam essas trocas. Um belo dia, aconteceu uma entrega muito diferente das demais. Na casa 55, morava uma família de crentes tradicionais e subitamente morreu, pela madrugada, a irmã Vera, da casa 60. Ela era uma mulher de oração, dedicada à igreja e à família. Todos se reuniram rapidamente para orar e prestar as últimas homenagens à falecida.

O corpo chegou com atraso de uma hora. Ao chegar o caixão que estava com a tampa fechada, apressadamente o entregador fez o responsável, irmão da falecida, assinar o recibo da entrega e saiu. Aliás, naquele dia, haveria jogo de Flamengo e Fluminense. O entregador era flamenguista doente e apostara um dinheiro alto entre os amigos com o resultado do jogo. Por uma infelicidade dos diabos, quando abriram o cachão, não encontraram o corpo da irmã Vera, mas o corpo do cachaceiro vascaíno João Geraldo, da rua de trás da casa 91.

Uma revolta sem tamanho se formou rapidamente entre os irmãos, que decidiram fechar o caixão e velar o morto à noite toda, enquanto o entregador já estava no boteco no centro da cidade com telefone desligado assistindo ao jogo. Antes que eu me esqueça da irmã Vera, vou terminar esta história, porque tem alguém apertando minha campainha gritando:

– Entrega!

Me deem licença.