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Dona Nati, a memoriosa

Escritora que viu o século nascer recorda-se da Belle Époque natalense e de tipos e lugares que desapareceu com o tempo.

*Franklin Jorge

Era muito dramática e bem-humorada, privilegiada por notável memória vivaz, minuciosa, polícroma. Gostava de agitar as mãos. Às vezes, ao narrar um acontecimento, imitava, dispensava uma caricatura que fazia-nos rir. Era muito engraçada e sabia a crônica antiga e a contemporânea da cidade.

Nascera numa Natal diminuta, num bairro característico, onde a avó materna tinha um Café popularmente conhecido como Canjica, uma especialidade do estabelecimento familiar. Comandado pela avó da escritora que via tudo e gravava na memória hospitaleira o que via para nunca mais esquecer. Tinha um ror de apelidos e suas motivações. Farinha Mofada, o astrônomo Antônio Soares, de ilustre família do Assu. , seu, , Lembrava-se de fatos políticos, sociais e culturais. Conhecia a fundo a crônica da vida privada e as tradições religiosas e cristãs.

O jogral Renato Caldas se refere ao Café Canjica, um lugar frequentado por Zé Areia, Cascudinho, os grandes nomes do improviso e da boemia. Rocco Rosso se referiu ao Canjica, quando o entrevistei e ele me emprestou um manuscrito de Luís da Câmara Cascudo que ele chamou de “apanhado sobre a aviação em Natal”. E, ao devolvê-lo, no Solar Bela Vista, disse-lhe tratar-se não de um apanhado, mas um livro orgânico da crônica aviatória de Natal. Escrita em papel de seda cor de rosa.

Descrevia com a nitidez de um desenho tudo o que vira, O Baldo. A Festa da Santa Cruz da Bica, que desapareceu. O fervilhar das Rocas, a Ribeira de dupla personalidade o comercio agitava a vida na cidade. Tudo convergia para o Cais da Tavares de Lira, onde tudo tinha um ritmo dinâmico.

Evocou os famosos gêmeos e sua mãe, viúva de grandes recursos e comerciante que viera da Paraíba, usava suntuosos casacos, dava festas em sua casa, frequentava clubes e a alta sociedade local. O falar singularíssimo dos rapazes, bobos ricos e elegantes, dependentes da mãe em tudo.

De suas memórias a mais curiosa me pareceu a dum bar de mendigos e papudinhos inveterados, conhecido como “o Oco”, na Rua Felipe Camarão, depois de uma esquina. Era um lugar precário, mal-afamado, que se enchia ao anoitecer da ralé que voltava para Mãe Luísa, após mendigar e pedir na cidade dorminhoquenta. Todos paravam lá, para tomar uma chama de cana e ir descansar para um novo dia. Dona Nati lembra-se que era uma espécie de celebração. Bebiam a última chamada antes do recolhimento. Contavam piadas, riam, confraternizavam, despediam-se.

Ufóloga e defensora do meio-ambiente, produziu um Teatro para que dialogassem os Planetas. Escreveu A abelhinha, O corumin amazônico. Guerra e Diálogo das Estrelas, peças de teatro, um livro de memórias que se dispersou com a morte da autora.

Conversávamos em sua sala de visitas e algumas vezes na sala de jantar, em torno da comprida mesa pintada de azul. Feita para acolher seus 24 filhos.