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Confidências de um confinado

Articulista de Navegos escreve sobre sua experiência de confinamento, forçado pela “peste chinesa”, arma biológica criada pela ditadura comunista, que lhe deu a oportunidade de reler seus autores prediletos.

*Clauder Arcanjo

 

Quando a recomendação das autoridades de saúde foi no sentido de nos confinarmos, de nos submetermos ao intitulado “isolamento social”, confesso que quis me vestir com a capa de rebelde. Ou seja, insurgir-me contr tais regramentos e continuar os abraços, os apertos festivos de mãos, a conversa larga, ombreado com meus amigos, colegas e vizinhos. Tudo movido pelo prazer do encontro livre, do convívio solidário e inteligente, com o gosto melífluo e suave de sentir a vida em sua plenitude. Mas, a razão freou minha insubmissão, e o receio da morte fez recuar o meu afã de “desobediência civil”.

Hoje, um mês depois de estar nesta “quarentena”, quero aqui relatar o balanço deste período.

Ganhei algumas coisas e perdi outras. A vida, suspeito, é sempre esse embate de contas. Espécie de haveres e deveres, ou, como rezam os contabilistas, de ativo e passivo. Vejamos.

Ganhei a companhia mais detida dos meus livros. Uma leitura profundamente solitária é por demais diferente de uma leitura convencional. Ao relermos nossas obras de cabeceira, reclusos e com o silêncio da vida, reencontramos nas páginas dos autores preferidos outra luminosidade, outra clarividência, como se tudo se banhasse com uma luz singular. Machado de Assis, por exemplo, me soou um defunto-autor mais galhofeiro e filosófico do que nunca; Augusto dos Anjos, um vate lírico das vilezas do homem; Cervantes, um cânone com raios de divindade, como se Dom Quixote conseguisse traduzir todo o riso e a tragédia da humanidade. Não quero dizer que li mais em tais dias, tão só que li melhor. Profundamente imerso em cada construção literária por mim revisitada. No campo dos haveres, também “revisitei” todos os melhores amigos, confeccionando, de início, uma lista dos que me fizeram mais falta. A eles, dediquei o tempo que a rotina diária “livre” antes nos suprimira. Liguei para vários deles, e conversamos no meio do expediente, rindo às escâncaras. Como se despachássemos decretos, ofícios, circulares?… Qual nada!, somente relembrávamos passagens vividas e olvidadas pelo passar do tempo; sem citar o cantarolar de algumas cançonetas de ocasião. Principalmente nos declaramos confidentes e amigos para sempre. E como me senti bem ao assim proceder! Preso pelo confinamento, fui invadido pela liberdade de me declarar detentor do cuidado e do zelo de tão valorosos companheiros e companheiras. Outro ativo (este ganhou juros e correções outras) foi o reencontro comigo mesmo.

Mergulhei nos meus anos já vividos, ousei julgar os projetos realizados e os postergados; bem como instei e reavaliei os planos traçados, antes da pandemia, para o futuro meu e dos meus. A uns, julguei louváveis. A outros, declarei-lhes a condição de “intentos medíocres”. Os louvados, quando o confinamento se encerrar, usarei como moeda para manutenção dos projetos dignos de minha energia e do meu tempo disponível. Quanto aos medíocres, soterrarei todos na cova funda do olvido. No que tange à família, mesmo distante, isolado em outra cidade, o meu amor se fez (e está) presente nas ligações constantes, nas notas pelas redes sociais, na comunhão em torno de um futuro mais nosso e ainda mais amoroso. Mais fundado em nossos valores e menos no que a sociedade nos impõe.

No quesito das perdas, decidi a esses pontos não destinar tempo, nem sequer em mencioná-los aqui. Pois, fielmente creio, que tais renúncias, quando o bom tempo voltar, eu as resgatarei com os juros da convivência mais humana e mais fraterna com a família, os amigos, os meus livros e com a sociedade que nos rodeia, e que, sempre é bom lembrar, fazem parte de nosso mundo.

Sim, quase ia me esquecendo de citar: na quarentena, eu escrevi mais. Não sei se melhor; darei um tempo para julgar esses arroubos de escrevinhador. Desta feita, com a pena imersa nas águas fundas, e escuras, da solidão.

Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.