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Borges, o aventureiro imóvel

Mestre do pessimismo escreve sobre escritor de língua espanhola que era uma biblioteca viva.

*Emil Cioran

Querido amigo:

No mês passado, durante sua visita a Paris, você me pediu para colaborar em um livro em homenagem a Borges. Minha primeira reação foi negativa; o segundo também. Por que comemorar quando até as universidades o fazem? A infelicidade de ser conhecido se abateu sobre ele. Ele merecia melhor, ele merecia ter permanecido nas sombras, no imperceptível, ter continuado tão inacessível e impopular quanto as nuances. Esse era o seu terreno. A consagração é o pior dos castigos – para o escritor em geral e especialmente para um escritor de seu gênero. A partir do momento em que todos o citam, não podemos mais citá-lo ou, se o fazemos, temos a impressão de aumentar a massa de seus “admiradores”, de seus inimigos. Aqueles que desejam fazer-lhe justiça a todo custo estão, na verdade, apenas apressando sua queda. Mas eu não sigo porque se ele continuasse nesse tom eu acabaria tendo pena do destino dele. E temos todos os motivos para pensar que ele já está cuidando disso.

Acho que um dia disse a ele que se Borges me interessa tanto é porque ele representa um espécime da humanidade em vias de desaparecimento e porque encarna o paradoxo de um sedentário sem pátria intelectual, de um aventureiro imóvel que está em facilidade em várias civilizações e em várias literaturas., um monstro magnífico e condenado. Na Europa, como exemplo semelhante, você pode pensar em um amigo de Rilke, Rudolf Kassner, que publicou um excelente livro sobre poesia inglesa no início do século (foi depois de lê-lo, durante a última guerra, que decidi aprender inglês) e que falou com admirável sagacidade de Sterne, Gogol, Kierkegaard e também do Magrebe ou da Índia. Profundidade e erudição não andam juntas; ele, no entanto, conseguiu reconciliá-los. Era um espírito universal ao qual faltava apenas graça, sedução. É aí que aparece a superioridade de Borges, um sedutor incomparável que dá tudo, mesmo o raciocínio mais árduo, algo impalpável, aéreo, transparente. Pois tudo nele se transfigura pela brincadeira, por uma dança de descobertas deslumbrantes e deliciosos sofismas.

Nunca fui atraído por espíritos confinados a uma única forma de cultura. Meu lema sempre foi, e continua sendo, não criar raízes, não pertencer a nenhuma comunidade. Voltando-me para outros horizontes, sempre tentei saber o que estava acontecendo em todos os lugares. Aos vinte anos, os Bálcãs não podiam mais me oferecer mais nada. Esse é o drama, mas também a vantagem de nascer em um ambiente “cultural” de segunda ordem. O estrangeiro se tornou um deus para mim. Daí essa sede de peregrinação por literaturas e filosofias, para devorá-las com um ardor mórbido. O que acontece na Europa Oriental deve necessariamente acontecer nos países da América Latina, e tenho observado que seus representantes são infinitamente mais informados e muito mais cultos do que os ocidentais irremediavelmente provincianos.

Como estudante, tive que me interessar pelos discípulos de Schopenhauer. Entre eles, um certo Philip Mainlander me impressionou particularmente. Autor de uma Filosofia da Libertação, ele também possuía para mim a aura que o suicídio confere. Totalmente esquecido, gabava-me de ser o único que me interessava por ele, o que não tinha mérito, pois as minhas indagações me conduziriam inevitavelmente a ele. O que não seria minha surpresa quando, muitos anos depois, li um texto de Borges que o trouxe justamente do esquecimento. Se lhe cito este exemplo, é porque a partir daquele momento comecei a refletir seriamente sobre a condição de Borges, destinado, forçado à universalidade, forçado a exercer seu espírito em todas as direções, mesmo que fosse apenas para escapar das sufocações.

Já que você está interessado em saber o que mais aprecio em Borges, responderei sem hesitar que sua facilidade em abordar os mais diversos assuntos, a habilidade que possui para falar com igual sutileza sobre o Retorno Eterno e o Tango. Para ele, qualquer assunto é bom a partir do momento em que ele mesmo é o centro de tudo. A curiosidade universal só é sinal de vitalidade se traz o traço absoluto de um eu, de um eu de onde tudo emana e em que tudo termina: um começo e um fim que pode, soberania do arbitrário, ser interpretados de acordo com os critérios você quer. Onde está a realidade em tudo isso? O eu, farsa suprema. A peça de Borges lembra a ironia romântica, a exploração metafísica da ilusão, o malabarismo com o ilimitado. Friedrich Schlegel, hoje, está ligado à Patagônia.

Mais uma vez, não podemos deixar de lamentar que um sorriso enciclopédico e uma visão tão apurada quanto a sua suscitem a aprovação geral, com tudo o que isso implica. Mas, afinal, Borges poderia se tornar o símbolo de uma humanidade sem dogmas ou sistemas, e se há uma utopia à qual eu gostaria de aderir, seria aquela em que todos o imitariam, um dos espíritos menos sérios que tem existia, até o último delicado.

Emil Cioran
Paris, 10 de dezembro de 1976Foto: Rogelio Cuéllar
Borges durante viagem ao México em 1973