• search
  • Entrar — Criar Conta

Um Clássico pós-moderno

Mestra, Doutora e com Pós-doutorado em Teoria Literária (UFRJ), escritora de livros, TV, teatro e cinema escreve texto para a 2ª edição revista de Fantasmas Cotidianos, de Franklin Jorge.

*Leila Míccolis

[email protected]

Dentro do conjunto da obra de Franklin Jorge, esta é díspar, pela estética sobre a qual foi construída. A princípio os leitores, mesmo os assíduos do autor, podem estranhar a dissemelhança do constructo literário por ele utilizado, pois estamos acostumados a “costuras” na elaboração (e leitura) de um texto, a digerir mensagens mastigadas, pré-fabricadas, já prontas, e presas a uma traiçoeira coerência que, sem deixar margem para que o leitor desenvolva as suas próprias reflexões, o guia para as conclusões do autor. Habilmente Franklin Jorge escapa desta armadilha, desconstruindo – tão ao gosto de Derrida – a crescente homogeneização institucional e ideológica, através da ruptura deste encadeamento lógico-formal ocidental, tal como faz o haicai na poesia (segundo Barthes), a salvo do discurso do poder, sem articulações que camuflam intenções manipuladoras.

Este livro talvez seja o mais querido do seu autor (já que foi a partir dele que surgiram outros), e é muito especial também para mim, exatamente por eliminar a possibilidade de mensagens ideológicas embutidas insidiosamente nos subtextos. Rompendo com esta narrativa sutilmente invasiva, “Fantasmas Cotidianos” expõe com franqueza e firmeza o pensamento de seu autor, um prestigiado intelectual conhecido no Brasil e no exterior, deixando o público livre para dialogar com o texto; dessa maneira, a comunicação se perfaz clara e plena entre emissor e receptor.

A princípio, tal descontinuidade narrativa pode lembrar a configuração conhecida entre nós como gendre de melánge; ou assemelhar-se a um diário, ou mesmo a uma espécie de caderno de ideias, categorizações propiciadas pela rica combinação e variedade de estilos, própria de uma literariedade exuberante como a de Franklin Jorge. Garanto-lhes, porém, que não se trata de nenhum desses três formatos. Vejamos um a um.

Gendre de mélange? O livro Mélange só tem em comum com a presente obra um certo “pizzicato” estilístico, porque os pensamentos, reflexões, opiniões pessoais, trechos de autores, notas, reminiscências, alusões e citações de Valéry gravitam em torno do período da segunda Guerra Mundial (publicado em 1943 pela Editora Gallimard), totalmente diverso do atual – as ânsias, perspectivas, problemas e conflitos vivenciados pelo autor francês não são os do mundo globalizado em que vivemos. Mudanças sociológicas afetam a literatura, intervêm nela; justamente por isso, apesar de tratar-se da mesma modalidade literária, ela adquire outras características e perspectivas por ocorrer em dois séculos tão desiguais entre si, em todos os sentidos. Os próprios três grandes gêneros literários da tripartição aristotélica sofreram alterações de percurso, não são mais exatamente como os gregos os conheceram.

Também não são anotações do dia a dia porque, neste caso, a linguagem seria mais informal e incluiria fatos cotidianos corriqueiros, como rol de compras, lista de desejos, gostos gastronômicos ou particularidades mais íntimas – além de que, diário, como o nome indica, registra ocorrências datadas e escritas de forma cronológica. Quanto a ser um caderno de ideias, sim… como o é qualquer livro de literatura – poesia, contos, crônicas, terror, ficção científica, realidade fantástica, romance. Porém, o diferencial está… nos fragmentos, repletos de mil perigos… Richelieu já dizia: “dê-me três linhas escritas por um homem e terei motivo para enforcá-lo”. Ou seja, um único fragmento de apenas três linhas já seria suficientemente fatal para quem o escrevesse, a ponto de condená-lo.

Riscos e ameaças à parte, o fragmento aparenta realmente uma inocência que não tem – não se iludam. Na dimensão semiótica, ele pode representar um lugar onde alguém se reúne com outros para, democraticamente, permutar, afinidades e discordâncias, expectativas e experiências; e onde a multiplicidade de assuntos age livremente. Por este ângulo então, enquanto ambiente/local público,  significa e sugere agrupamento, diálogo, interação, intercâmbio, troca de ideias, de emoções, criação de vínculos, encontros, re-união. “O lugar faz o elo” afirma Maffesoli.

É ainda o sociólogo francês que faz com que compreendamos mais profundamente este lugar de referência, tão raro dentro de nossa literatura: [são] “lugares que nos quais se rabisca a própria presença, mas sítios que são vivenciados também pelo outro, preservando assim não apenas a memória individual como a coletiva. (…) Já não é no desenvolvimento histórico que se molda o etos pós-moderno, mas na natureza reapropriada, no espaço compartilhado”. Portanto, ao invés de pedaços esgarçados de ideias soltas, esta obra é um local no qual se celebra o conhecimento artístico, onde nos sentimos reunidos, em contato com a pós-modernidade e simultaneamente com a cultura de nossos antepassados, ou do que restou dela (nas palavras de Dalrymple).

Um local constituído de fendas e inclusões: um entrelugar, por apresentar-se como espaço cultural diferenciado, em que não há soma de falas (adição simultânea que só acrescenta mais algumas dicções diluídas ou abafadas, entre tantas); não se trata, portanto, de diversidade, mas de diferença, não de um coral, mas de superposição de diversas vozes em que todas são ouvidas distintamente, possibilitando a criação de uma multifacetária concepção do que seja “novo”. De acordo com Homi Bhabha, “essa arte não retoma só o passado como causa social ou precedente estético. Ela renova o passado, refigurando-o como um “entrelugar”, contingente que inova e irrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia de viver. Olhando para trás, indo para frente”.

Este fenômeno sociológico de preservação do passado nos dias atuais pertence ao retorno do trágico nas sociedades contemporâneas e é facilmente explicável em tempos analisados por Bauman de Modernidade Líquida, em que as novas gerações, carentes de informações do “mundo antigo”, têm saudades de referenciais que nem conhecem, embora intuam que de algum modo eles rompem com a ditadura do imediatismo e do consumismo sufocantes. Maffesoli chama a isso de “carpe diem de antiga memória”. Quaisquer que sejam as gerações, “coexistimos num conjunto em que tudo compõe um corpo”; se unirmos, pois, todos os fractais, formaremos um desenho único do mundo que constituímos juntos, mesmo que não tenhamos tido contatos físicos com Camões, Thomas Mann, ou Zila Mamede.

Eis o gigantismo de os fantasmas Cotidianos: lembrar-nos de que a arte une Caetano Veloso a Pérez Celis; Câmara Cascudo a Bataille; Júlio Platero Haedo a Lagerkvist; Delacroix a Borges; Jorge Fernandes a Shakespeare; Oscar Niemeyer a Van Gogh; Stella Leonardos a Yeats; Rodolfo Capeto a Luisa Mercedes Levinson; Nietzsche e Platão a Lobão e Nelson Rodrigues, e todos eles a nós mesmos, por serem vultos que resistiram (e ainda resistem) à massificação da cultura.

Preciso ainda assinalar as frases curtas escritas pelo autor, sintéticos aforismos que me lembram garrafas com bilhetes de socorro lançadas ao oceano, pedindo que urgentemente reflitamos de forma menos superficial e simplista sobre tudo o que vemos, sentimos e pensamos:

Os paraísos artificiais da escritura
Quase não saio para não me privar dessa segunda infância.
.O homem pós-moderno é um legionário do instante.
A vulgaridade é superlativa.
Não sei que sentido teria a vida sem a consciência da morte.
O plástico, matéria-prima repulsiva. Símbolo infeccioso da sociedade de consumo.

Etimologicamente, o vocábulo fantasma origina-se do grego phantázein, “fazer aparecer”, que por sua vez deriva de phaínein, “mostrar”; Franklin Jorge recorre a esses dois significados para fazer surgir e nos mostrar tantos seres queridos, alguns diáfanos, outros concretos – porém todos tangíveis –, cujas vozes e sussurros continuam nos assombrando e nos maravilhando ontem, hoje e sempre. Do início ao fim, um livro dinâmico. ágil, arrojado, escrito por um pensador extremamente original, que não teme expor seus conceitos e ideias, e o faz de forma brilhante, sem concessões, omissões ou meias-verdades. Cada vez mais é imprescindível conhecermos escritores corajosos e ousados, porque o mundo está repleto de farisaísmos, de críticas dúbias, ambíguas, rasas, veladas e indefinidas. Franklin Jorge não aceita negociar nem com a sua literatura nem com seus princípios, e essa é uma das suas mais marcantes características, que perpassam todo o conjunto de sua obra. Inclusive, ele chega a ser feroz muitas vezes, mas este é o risco que correm todos os que se reusam a observar o mundo em cima do muro, à distância, sem se envolver nos acontecimentos.

Em “Por que ler os clássicos”, o escritor Ítalo Calvino argumenta: “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (…) [um livro] que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo (…) e que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente os repele para longe”. Nesta acepção, Fantasmas do Cotidiano é a meu ver um clássico pós-moderno. E por todas os motivos apresentados neste prefácio, repito: excluo a possibilidade desta obra ser gendre de mélange, diário, ou caderno de ideias. Percebo-a como um autêntico e atípico épico contemporâneo, capaz de pisar os solos do passado e simultaneamente de narrar o presente através de uma bela saga legada a nós por pessoas que, como o próprio Franklin Jorge, fizeram e ainda fazem a diferença no mundo.