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Armando o prazer solitário da leitura

Doutor em Estudos da Linguagem – Literatura Comparada pela UFRN-2016, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP-2001, bacharel em Jornalismo pela UFRN e graduando em Letras-Espanhol EAD pela UNIP-SP, é Idealizador da ação literária Biciteca Circulante, que consiste em encontros com leitores nas ruas da Vila de Ponta Negra por meio de uma bicicleta-biblioteca. Foi secretário particular do poeta Haroldo de Campos

*Franklin Jorge

Como surgiu a Biciteca?

A Biciteca surgiu da vontade de formar leitores e fomentar a leitura na minha comunidade, Vila de Ponta Negra. A ideia inicial era organizar um grupo de leitura, a partir de encontros em espaços variados, como praças públicas e áreas de lazer, onde os participantes pudessem compartilhar sua leitura de vida e, ali, num clima de trocas de experiências, serem estimulados à vida da leitura. Esse binômio vida-leitura sempre me interessou enquanto pesquisador de literaturas e leitor apaixonado. Antes de levar a cabo essa ideia, meu pai me disponibilizou, para meu lazer, uma antiga bicicleta, na qual, ao longo de mais de trinta anos, ele transportou netos, bisnetos e uma variada gama de artefatos, ferramentas, frutas, legumes, compras de supermercado etc. Fixei um balaio no bagageiro e fui cumprir minha parte nessa missão de vida da longeva bicicleta: transportar livros. Estava definida a ação cultural há muito desejada: o livro iria ao encontro do leitor em vez de o leitor vir ao livro. Sempre pensei que o lugar do livro é na rua. A rua: grande biblioteca.

O que espera alcançar com esse projeto?

O que os projetos institucionais, locais e nacionais, em geral, têm esquecido: a leitura como instrumento de transformação social. Os gestores culturais, em grande parte, não têm dado à literatura o devido tratamento. Há mais iniciativas independentes, como a da Biciteca, por exemplo, promovendo o estímulo à leitura, e com isso à formação de cidadãos autônomos, do que propostas efetivas de incentivo ao gosto pelos livros. A leitura pluraliza percursos, redesenha perspectivas, desestabiliza paradigmas retrógrados. Isso em mente, somo-me ao coro dos descontentes com o estado de coisas não apenas local, mas universal e transepocal, e me empenho, através do encontro com leitores e não leitores do meu bairro, a colaborar com a fecundação de consciências críticas, assentes no respeito às diversidades e no engendramento de um projeto de coletividade e cidadania possível.

Tem recebido algum apoio?

Nunca me preocupei em procurar apoio, pois sempre temi fazer qualquer tipo de concessão e perder a liberdade inerente à ação literária. Algumas pessoas, no início do projeto, doaram alguns livros, mas, por não dispor de uma logística de espaço para acomodá-los, preferi, pelo menos por hora, a operar apenas com obras do meu acervo. Esse projeto, que possui um caráter flexível no que respeita ao seu funcionamento, sempre teve como princípio colocar em trânsito livros que pertenceram à minha biblioteca, obras que durante algum tempo fizeram parte de minha formação intelectual e humana. Levar às pessoas um livro que, em vez de me pertencer eu que devo ter pertencido a ele, é levar ao outro um pouco do que penso e sou. É, portanto, um ato de entrega, de doação não apenas de um objeto-livro, mas de um objeto-vida. As conversas com os leitores nas ruas, por isso mesmo, são tão importantes quanto a entrega do livro, na medida em que configuram trocas de vivências e visões, sentimentos e buscas.

Como funciona isto?

Dedico algumas horas da semana para pedalar pela Vila, levando no bagageiro da Biciteca um balaio com livros de variadas temáticas. Como venho da Comunicação e da Literatura, as obras transitam mormente por esses campos do saber, mas não apenas. Vou livremente ao encontro de possíveis interessados, que podem estar caminhando ou situados em algum ponto. Paro em determinados lugares, como bares, praças, casas de amigos, por exemplo, e o próprio balaio, pelo inesperado do formato que imprimiu à bicicleta, fala por si. Um ar de feira do livro portátil está posto. Algumas pessoas se aproximam, primeiro se espantam com aquela “arrumação”, mas logo estão íntimas dos livros, que passam a ser olhados, folheados e, algumas vezes, amados à primeira vista. Em vez de mangaba ou peixe, o balaio, nessa feira livre, é de livros. O sabor da leitura é insondável. Converso com o interessado sobre a implicação da leitura em sua vida. Ele me fala da vida e do lugar do livro em sua lida. Não raro, ele escolhe o livro que lhe interessou e segue seu rumo. Eu, o meu. Contente com mais uma vida que por hora li e me transferi. Afinal, não seria esse o maravilhamento da leitura?

Como tem sido recebido pelas pessoas?

Com espanto e afeto, ingredientes salutares, a meu ver, a qualquer instigante leitura. Penso que o projeto não logra seu objetivo apenas quando deixa um livro com alguém. Isso, juntamente com as conversas com os leitores, é importante. No entanto, perceber nos olhos das pessoas nas ruas uma reação de surpresa com a Biciteca, já está cumprindo seu intento o projeto. Ver uma bicicleta que permutou o bagageiro por um balaio de livros conduz ao estranhamento, ou seja, à quebra de uma rotina, de um valor armazenado para a chegada de uma nova informação. Isso já é uma fenda para a entrada do leitor.

Quando tudo começou?

Em janeiro de 2018, quando meu pai me deu a bicicleta para lazer e eu a modifiquei para ler, para Lazer, porque sem tesão só há soluço, repetição. É ler pra crer, por sinal este é o título do meu mais recente livro, Ler pra crer – a, b, ser da leitura. Ser que tenho aprendido com os seres da minha comunidade e das possíveis outras comunidades onde a Biciteca der de pedalar. E ler.

Contatos: WhatsApp: (84) 99615 9919; e-mail: [email protected]