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A psicologia fascista em Thomas Mann

Colaborador de Navegos é o criador do Espaço Literário Marcel Proust, um canal voltado para a difusão da Alta Literatura e discussão de ideias.

*Carlos Russo Jr.

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“Ser Ninguém é pior que ser Bom ou Mau. Ser ninguém é o adubo preferido do fascismo”.

A situação de desagregação da República de Weimar e a crise socioeconômica profunda da Alemanha do final dos anos 1920, sinalizavam a possibilidade do surgimento de um regime voltado para a destruição das conquistas civilizatórias e humanísticas, ao estilo do que ocorrera na Itália no princípio da década, com a assunção ao poder do falastrão fundador do fascismo italiano, o antigo ex-socialista Benito Mussolini.

Em 1930, Thomas Mann escreveu um pequeno conto intitulado “Mário e o Mágico”.

Thomas Mann, estilisticamente buscou compreender os aspectos essenciais de um povo trabalhador, mas que fosse dócil e ingênuo ao ponto de concordar em se submeter a líderes ridículos, imorais e oportunistas, assim como os mecanismos com que esses líderes espúrios logravam o domínio das massas.

Sobre “Mário e o Mágico” nos explicita o próprio autor: “A história se inclina sobre a psicologia do fascismo e também sobre a psicologia da liberdade, que com sua doutrina de boa vontade, coloca-se em estado de inferioridade diante da inabalável resolução animalesca e dominadora do adversário, do líder fascista”.

Ao chegar a um balneário italiano em férias com sua família, o narrador alemão descreve a atmosfera à qual, diferentemente daquela por ele conhecida no passado do povo italiano, faltava inocência, pois havia maldade e “opressão demais”.

Os italianos da elite haviam se transformado em um público que vigiava a todos os humildes trabalhadores; eram muito altaneiros em sua ignorância e fingiam um porte de conhecimentos que absolutamente não possuíam.

Aquela elite, ante de tudo financeira e parasitária vivia também em constante estado de alerta, como para identificar possíveis inimigos em todas as atitudes que destoassem das suas.

“Não tardamos a entender que se tratava de política, que a ideia de nação estava em jogo. Efetivamente a praia formigava de crianças e jovens vestidos com símbolos patrióticos, o que não deixa de ser um fenômeno anormal e aflitivo.” Afinal, o “patriotismo é o último refúgio do canalha”, já dissera Samuel Johnson, ainda no século XIX.

“Dizíamos que essas pessoas (a elite italiana) atravessavam um período análogo a uma doença que contagiava a todos eles.”

De todo modo o narrador e sua família, por falta de opções no hotel Torre de Venere onde se hospedavam, decidiram estar presentes num teatro onde se apresentaria um mágico. Aliás, ao que tudo indicava, a maioria das pessoas iria à apresentação. Os estrangeiros e a elite muito bem acomodados em cadeiras e os populares se acotovelavam em pé como podiam.

O Mágico tão aguardado será a figura central do enredo; ele é um italiano autoritário ilusionista e hipnotizador de audiências. Na plateia, de pé, teremos o outro protagonista, Mário, um digno trabalhador de um restaurante, que, como veremos, contra sua própria vontade terminará se submetendo no palco, sedo dominado e rapidamente reduzido a uma marionete do Mágico, o prestidigitador.

“Il Cavaiere Cipola”, o Mágico, ostentava o mesmo título pelo qual o próprio Mussolini, o Mito da Itália fascista, gostava de ser chamado.

Cipola é o “moderno domador das multidões, homem de vontade e ação, cuja astúcia e energia estavam inteiramente a serviço do mal”.

Para um Ilusionista, seja ele “Il Cavaiere Cipola”, um Bolsonaro, ou um Trump, a verdade será sempre, simplesmente, um parâmetro que nada significa; apenas a sua versão de uma ficção mal-intencionada importa, versão que ele deseja impor a todos os que o assistam.

É claro que Cipola evita submeter os turistas e a aristocracia presentes à Torre de Venere ao seu controle e caprichos, afinal, com ele aqueles se deleitam; será apenas à audiência popular que ele deseja que o apreciem e aplaudam, estabelecendo o domínio sobre as massas. Logo, os esforços de amestrador do Mágico são dirigidos aos espectadores locais, aos estudantes e aos trabalhadores braçais do balneário.

O narrador, álter ego de Mann, não se confunde com a aristocracia e a elite italiana presente. Estava lá com a família por um acaso. Como um intelectual consciente, sente- se profundamente incomodado com o acanalhamento de Cipola e se questiona:

“Sob o regime de hipnotizadores da vontade das pessoas, de manipuladores que tornam homens livres em marionetes, qual a margem de liberdade que nos é concedida?”

O mal estar que ele e as poucas pessoas pensantes da plateia sentem, vai se agravando até o limite do intolerável, ao mesmo tempo em que a grande plateia se deixa encantar com as manipulações que Cipola realiza com eles próprios. Aplaude, vibra, se entregam ao manipulador!

Cipola falava bem, sem interrupção, mas tudo o que diz são expressões vagas, presunçosas, frases de propaganda, sem a mínima consistência. Interrogava pessoas, mas seus cumprimentos tinham qualquer coisa de zombador e degradante.

Para Cipola, assim como para os exterminadores da liberdade, “comandar e obedecer constitui um só princípio, uma identidade absoluta.” Assim como a ideia de povo e do chefe.

O “Cavaliere Cipola” tinha o hábito de escolher uma pessoa por noite e torna-la seu alvo. “Mas suas indiretas deixavam transparecer um rancor para com todos os demais humanos, nada possuía de fingido.” Fixava seus olhos no vazio, e exclamava uma mentira suprema:

“Todo mundo sabe escrever e ler na Itália, cuja grandeza não oferece nenhum asilo à ignorância e às trevas.”

Obriga diversos jovens a papéis humilhantes, embora o auge seja deixado para o final, quando uma catástrofe irá se tornar inevitável. “A alma não pode viver sem querer, não querer fazer coisa alguma é insuficiente para preencher uma vida, e, logo, não querer alguma coisa permite que outra vontade se imponha”, infere o narrador.

“Afinal, ser Ninguém é pior que ser Bom ou Mau. Ser Ninguém é o adubo preferido do fascismo”.

Mário, um dos escolhidos na plateia, sobe ao estrado. Sob o estalar do chicote do prestidigitador, ele primeiro é obrigado a reproduzir a saudação faccio- romana, o braço erguido e a mão estendida. Chamado por Cipola de Ganimedes (o camponês grego escolhido por Zeus para ser seu pederasta, na mitologia), Mário é levado a beijá-lo próximo da boca na presença da própria noiva.

“Eu o amo, beije-me, ordena o corcunda Mágico”. E Mário o faz, com uma expressão estúpida de felicidades. Cipola sorri, brutal, cruel, antes de estalar novamente o chicote despertando Mário do transe.

Quando desce do estrado, ouvem-se dois tiros. Mário “não tinha outra saída para escapar à humilhação e reencontrar sua própria dignidade, a não ser matando Cipola”.

Um fim impressionante, funesto, contudo uma libertação nos diz o narrador.

Já ao princípio da narrativa Mann, de certa forma, antecipara o final. “As crianças, graças a Deus, não compreenderam onde terminava o espetáculo e onde começava a catástrofe, e nós as deixamos sob a ilusão de que tudo havia sido apenas teatro”.

Pois não fora teatro, mas, como o próprio conto “Mário e o Mágico” uma imitação da vida, um simbolismo da dominação e da submissão do ser humano sob o fascismo.

E, ao mesmo tempo, o momento do sacrifício nos dois tiros que saem da arma de Mário, uma maneira de sua possível destruição, na morte do prestidigitador.