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A obscena hipocrisia inglesa

Colaborador de Navegos escreve sobre o escândalo que foi o lançamento do romance O amante de Lady Chaterley. Proibido por ferir a moral vitoriana.

*Carlos Russo Jr

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“O amante de Lady Chatterly”, de D.H.Lawrence, considerado obsceno, foi proibido por mais de trinta anos na Inglaterra. Antes de 1960, somente circulou de forma clandestina nos países de língua inglesa!

O uso de palavras tidas como “indecentes” (o “amor à italiana”, por exemplo), as descrições dos atos sexuais, a relação entre uma burguesa- aristocrata e um trabalhador, a crítica à guerra, tudo isso eram afrontas ao conservadorismo e ao moralismo tradicional.

“A frieza na relação sexual é morte e imbecilidade” e, complementa, ”Quer que eu lhe diga? Quer que eu lhe diga o que você tem e os outros homens não têm? (…) Coragem dos próprios sentimentos, coragem da ternura; essa coragem que o faz pôr a mão na minha bunda e dizer que a tenho magnífica!”

David Herbert Lawrence (1885/1930) foi um dos mais importantes modernistas ingleses, aquele que ao abordar a sexualidade e as relações humanas, pôs a nu os convencionalismos e os preconceitos.

No conjunto, sua obra expõe uma profunda reflexão sobre os efeitos desumanizantes da modernidade e da industrialização. “O que os olhos não vêm e a mente desconhece não existe. A cada dia basta seu mal e a cada momento a aparência da realidade.”

Mesmo tendo sua vida interrompida precocemente pela tuberculose, suas contribuições estenderam-se a praticamente todos os gêneros literários: novelas, contos, poemas, teatro, livros de viagens, traduções, arte e crítica literária.

E ademais, além de escritor, este privilegiado pelas musas, era pintor e produziu obras expressionistas de enorme valor.

O romance nos leva à Inglaterra pós-Primeira Guerra, um país em rápida modernização, o império aristocrático e potência capitalista em seus últimos anos de hegemonia mundial, antes da ascensão americana. Sua personagem principal é Constance – Lady Chatterley – jovem burguesa de formação liberal e intelectualizada, que se casa com o aristocrata Clifford, dono de minas de carvão em Wrgaby.

Clifford, o Lord Chatterly, volta da guerra paraplégico e impotente. Dedica-se inicialmente a escrever romances e, posteriormente aos negócios do carvão mineral. Constance – que conhecera o sexo antes do casamento – passa a ter uma vida estéril, vazia e sem emoção. Incapaz de encontrar o equilíbrio entre a felicidade física (que ela busca em um caso com o escritor irlandês Michaelis) e a felicidade espiritual (que às vezes ela pensa ter nos seus longos diálogos com Clifford).

“A bela e pura liberdade de uma mulher era infinitamente mais maravilhosa que o amor ligado ao sexo, pois a mulher podia tomar o homem sem realmente se entregar. Ao contrário, ela podia usar essa coisa do sexo para ter poder sobre ele, bastando que se refreasse na relação sexual, deixando o parceiro chegar ao fim e consumir-se, sem que ela atingisse o clímax; somente então ela poderia prolongar a relação e chegar ao orgasmo e ao clímax, enquanto ele seria apenas o seu instrumento.” Assim fora sua relação com o primeiro amante, Michaelis.

Quem irá chacoalhar de vez sua vida insossa e mostrar que o prazer físico e o bem estar espiritual são possíveis na mesma relação será o guarda-caça Oliver Mellors – por quem irá se apaixonar, num processo gradual de longa experiência tátil, sensível e sexual.

“O amante de Lady Chatterly”, é o elogio da prática sexual imersa na paixão!

Lawrence defende a presença da carnalidade como inerente ao verdadeiro amor: sem sexo não existe amor. Logo, não existe sentimento sem sexualidade. A morte de um acarretará a morte do outro.

“Se o amor sexual desaparecesse, alguma coisa deveria substituí-lo, por exemplo, a morfina que os governos deveriam espalhar pelo ar para garantir bons finais de semana à população”.

Antecipando-se em quase quarenta anos aos tempos da liberação sexual, Lawrence afirma que a sexualidade transforma a alma em brasa, por isso o amor carnal não deve possuir freios e nem vergonha. Logo, o sexo é algo do qual não nos deveremos envergonhar. Algo extraordinário? Não, ele faz parte da receita da felicidade.

No romance o ritmo aumenta, as reflexões de Mellors e Constance passam a se tornar mais apaixonadas. Há um romantismo primitivista sempre presente e dele também deriva um olhar crítico em relação à industrialização, ao seu ritmo acelerado e à ligação da sensação de satisfação com a sensação de posse.

Para o guarda-caça Mellors, que já vinha de uma experiência dilacerante no casamento, ao tomar uma nova mulher, Constance, sabia que trazia para sua vida um novo ciclo de dor e de destruição. Não se tratava de desejo, mas de uma sensação cruel de incompletude solitária que exigia a presença de uma mulher silenciosa envolvida em seus braços.

“Não me parece muito bom tentar livrar-se da solidão. É preciso aceitá-la pela vida afora. De repente, às vezes, o vazio é preenchido, mas o que resta, aquilo que realmente conta é a aceitação da solidão e a disposição de apegar-se a ela por toda a vida”.

“Gosto dos homens e eles de mim, mas não suporto a impudência atrevida das pessoas que comandam este mundo. É por isso que não posso seguir em frente. Odeio a impudência das castas sociais, odeio a impudência do dinheiro. Num mundo desses, que posso oferecer a uma mulher?”, assim refletia o empregado de Lord Chatterly.

Pessoas apenas interessadas em dinheiro e no consumo têm perda de sentimentos, o sinal máximo da decadência. Ao calar, a intuição a civilização moderna matou os sentimentos humanos.

O grande desafio da mente do autor é a busca de uma terceira opção entre o capitalismo industrial e a doutrinação stalinista. “Se fosse possível fazê-las compreender que há grande diferença entre viver e gastar dinheiro. Se fossem educadas de modo a ‘sentir’ em vez de ‘ganhar e gastar’(…)”.

Lawrence diversas vezes cita Henri James e sua deusa-cadela, “o Sucesso”! Sucesso para os homens, tudo gira em torno desse eixo. E o dinheiro é o timbre do sucesso. Parecia que a maioria dos homens “realmente bons” perdia a sua vez.

“E se você perde a sua oportunidade engrossará o time dos fracassados”. A busca do sucesso sustentava o espírito do paraplégico e impotente Lord Chatterly.

Supomos que o mundo esteja cheio de possibilidades, mas elas se reduzem a muito pouca coisa na maioria das experiências pessoais.

“Envelhecer é tornar-se constituído de camadas de desilusões, como extratos geológicos que se depositam.” “O dinheiro nos envenena quando o temos e nos mata de fome quando nos falta”. “E isso porque não se tem culpa de estar vivo. Quando se está vivo o dinheiro é uma necessidade, a única necessidade absoluta”.

Qualquer homem em bom juízo saberia que a esposa estava apaixonada por alguém e prestes a abandoná-lo. Clemens, no fundo, tinha certeza de que Clifford estava absolutamente ciente do fato, apenas recusava-se a admiti-lo. Ele deveria ter-se preparado para isso; se ao menos houvesse admitido o fato e lutado, teria agido como homem. Mas não! Sabia e passou todo o tempo brincando consigo mesmo, fingindo que não havia nada.

“Ao mesmo tempo, em algum cantinho de sua estranha alma, enquanto o ajudava e instigava ao máximo, no seu âmago de mulher, ela desprezava o marido, odiava-o. Ele representava um animal caído, um monstro que se contorcia, no mais recôndito âmago de sua feminilidade desprezava-o com desdém feroz e sem limites. O mais miserável dos mendigos tinha mais valor do que ele”.

Será na ruptura definitiva que pela primeira vez Constance odiará Clifford de maneira consciente e definitiva. Um ódio feroz como se ele devesse ser apagado da face da terra.

E era estranho perceber como aquele sentimento a tornava livre e cheia de vida. Odiá-lo e admitir o fato para si mesma. “Agora que o odeio, jamais conseguirei viver com ele”.

“E como podem ser enganadas as pessoas com boas maneiras e falsas gentilezas”, o que por tanto tempo Constance praticara com Clifford. Para ela, “a maioria das mulheres jamais se apaixona, nem mesmo começa a amar. Não sabe o que isso significa. O mesmo se aplica ao homem”.

O romance, que se desenvolvia em andante, termina em um presto. É como se todo o livro fosse um grande relacionamento, desde o primeiro olhar ao gozo triunfante. A busca dos personagens é pela satisfação completa, independente de sua classe, idade ou da opinião pública. Busca pelo prazer – não o prazer hedonista de orgias, eternas bebedeiras, grandes gastos -, mas um prazer quase epicurista do amor, da boa comida, da diversão possível, do intimismo.

“Não creio no mundo, nem no dinheiro e nem no progresso, nem no futuro de nossa civilização. Se houver um futuro para a humanidade terá que ser algo muito diferente do que temos hoje. Se as coisas continuarem como estão, não haverá nada no futuro além de morte e destruição para as populações industriais”.

Nossa época é essencialmente trágica, e por ser assim, recusamo-nos a vivê-la tal qual ela é. “A pesar disso temos de viver, não importa quantas vezes o céu desmorone em nossas cabeças”.

A ternura é o que mais vale mesmo entre homens de sadia virilidade. É o que faz os homens verdadeiros e não macacos, mormente nos tempos contemporâneos em que o sexo banalizou-se em atos praticados entre “máquinas copuladoras”.

E como conclusão, deixa-nos Lawrence: “Talvez somente pessoas capazes de uma união verdadeira sintam-se só no universo. As demais são meio viscosas e se grudam à massa.”