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A mulher do fim do mundo

Colaboradora de Navegos celebra em um texto visceral a memória de uma cantora que se podia dizer uma força da natureza.

*Maria do Espírito Santo Gontijo Canedo

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A voz de Elza, berço de Fúrias indomáveis, rasga a pele, serra a carne, e se aloja em cheio no coração de quem ouve. Tempestade e ímpeto dos nossos trópicos trôpegos, voz envolta por uma rouca tessitura de veludo azul.

Elza negra, mas o negror de Elza, nos idos de 1930, não era a expressão de um aspecto coletivista muito em moda no mundo de hoje. Quando Elza nasceu em uma favela do Rio de Janeiro onde hoje fica a Vila Vintém, ser negra não era questão identitária, não era motivo de orgulho, não era questão de interesse sociológico, nem um problema a que se devesse atenção. Entre a Abolição da Escravatura em 1888 e o nascimento de Elza há um intervalo de meros 42 anos. Para a maioria das pessoas honestíssimas daquela época, o fato de os negros não serem mais chamados de peças, de não serem comercializados em praças, não serem açoitados em troncos, nem expostos em pelourinhos, já era a demonstração clara e suficiente de que a caridade cristã abundava no mundo. Os pretos eram pobres, mas eram livres. Não há glória maior que a liberdade. Os pretos tinham um bem de valor inestimável, supremo. Só que os pretos – ah, os pretos…- não ficavam jubilosos com esse presente sublime. Uns ingratos, é o que sempre foram.

Foi nesse contexto histórico-hipócrita que Elza nasceu. A única voz que tinha era a voz de metal brilhante, ouro rascante, Elza no céu com esmeraldas e diamantes. Macumba bretã, jazz, giz de cera, mel de abelha, caldeirão de bruxa, alguidar. Essa mulher sempre deu o que ouvir, o que pensar, o que falar.

Elza mulher. O feminino é outro ângulo do enigma Elza. Enigma que venceu o estigma e se tornou o que Elza sempre foi. Magma. Dizem os especialistas em canto que a voz de cada pessoa é como a impressão digital: exclusividade de quem a possui. E que impressão avassaladora nos causa a voz de Elza! Voz primeva, grito primal, parto do mundo, Uranós e Gaia. Olorum e Terra. A voz de Elza tem serras elétricas, mastodontes, velociraptores e o calor da fogueira alegórica na entrada da caverna de Platão.

O que lhe restava fazer além de expor ao mundo, com sua voz portentosa de amazona carioca, a crua e sedenta cavalgada das Valquírias das favelas do Rio de Janeiro da primeira metade do século XX?

Não há como domesticar o barroquismo quando se tenta falar sobre Elza.

Laroyê, Exu!

Ogum mora na lua, Xangô lá na pedreira, Oxóssi nas matas virgens, Elza Soares no fim do mundo.

Deus é Mulher, Exu nas Escolas, Elza só canta o que gosta, no presente eterno do tempo circular mítico.

Eu vim do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. Do Planeta Fome.

Do Planeta Fome veio a mulher do fim do mundo. Elíptica, apocalíptica, verídica, infinita.

Elza.