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A lua como elemento dramático do Eu e do Outro em Salomé

Como todo poeta que tem o dever de cantar a Lua, segundo Jorge Luis Borges, Articulista de Navegos aproxima o leitor da obra do irlandês Oscar Wilde (1854-1900), através da leitura de uma de suas peças mais enigmáticas sobre a enteada de Herodes, rei da Judéia.

*Francisco Alexsandro Soares Alves

A Lua mantém uma relação esfíngica com o artista. Assim como Édipo, o artista recebe desta esfinge o dever de decifrá-la. E o ato de decifrar a Lua é ao mesmo uma atitude do artista diante de si mesmo, porque a Lua é o duplo do mistério maior, a alma do artista. A poiésis do mistério é o encanto da possibilidade de conhecer. A Lua esfíngica é o espelho do artista edipiano: amaldiçoado desde o nascer, tolo em sua arrogância superior e abatido em si mesmo por forças que não controla totalmente. O humano, quando não o seguram, será sempre um animal erótico, um animal da vida; há nele uma pulsão criadora de bichos sem nome. E as coisas, as coisas serão sempre para esse animal erótico, cheio de eros, de vida, a possibilidade de viver e de morrer, mas essa morte, que é a satisfação além da moral, para esse animal, é a transfiguração. O artista perece por seu desejo, e se torna perene quando o realiza e o entende.

A Lua é o símbolo do alto romantismo alemão de Novalis (1772-1801) e Hoffmann (1776-1822), é a guardiã da paixão proibida de Tristão e Isolda, de Wagner (1813-1883). É “ao luar” que Beethoven (1770-1827) compõe sua Sonata n. 14, opus. 27/2. É o brilho azul lunar que Chopin (1810-1849) deseja encontrar na melancolia de suas partituras para piano. E é a grande personagem silenciosa do drama Salomé (1896), de Oscar Wilde, que viria a ser transformada em drama musical por Richard Strauss (1864-1949), estreado em 1905, a partir da tradução alemã feita pela poetisa Hedwig Lachmann (1865-1918), embora também exista uma versão do drama musical cantado em francês, a língua original do drama de Wilde.

Quando se inicia o drama, Narraboth, capitão da guarda real contempla a princesa Salomé, em êxtase a declamar: “como está linda a princesa Salomé está noite”. O pajem, que o ama, o adverte que não olhe para as pessoas dessa maneira, porque “coisas terríveis podem acontecer”. Narraboth então contempla a Lua e exclama que o astro é como uma princesinha distante, meiga e fria que baila com pés de pombinhas. Todavia o Pajem vê uma mulher morta saindo da tumba, “como se movimenta devagar e distante”. Então, apressadamente, Salomé sai do palácio em direção ao jardim. Ela odeia todos, sobretudo os “brutais romanos” e num suspiro de alívio, para e admira a Lua, afirmando que “a Lua é uma princesinha que nunca conheceu homem, branca, virgem e pura e permanecerá assim para sempre.” Nesse momento se escuta uma voz, vinda de uma cisterna, é a voz do profeta João, o Batista. A princesa ordena que deseja ver o profeta, mas Narraboth lhe nega o pedido, alegando ordens de Herodes. Porém a delicadeza e a suavidade da jovem seduzem os desejos masculinos plenos de testosterona do capitão e, com o braço levantado, ordena que tragam o profeta à presença de Salomé.

Quando o profeta está no palco, ele é o único personagem que não comenta sobre a Lua, inicia sua pregação com versículos da Bíblia, mas a princesa se comove de forma diferente. Ela quer possuir o corpo do profeta. Tocá-lo, cheirá-lo e beijá-lo. João repudia a filha daquela “que se deitou com toda a guarda romana no vinho de seus pecados”, se refere a Herodíades. A santidade do profeta abre inéditas possibilidades

sexuais para princesinha. Porém João rechaça quando a mesma deseja lhe beijar a boca, e se retira para a masmorra. Salomé, sexualmente insatisfeita, se torna sombria.

Então entram Herodias e Herodíades e toda a confusão da corte do tetrarca. Ambos estão discutindo. Herodíades é repudiada por Herodes, posto que dormiu com toda a sua guarda e Herodes sente desejo pela enteada, a jovem Salomé. Sufocado, Herodes afirma que a Lua é uma mulher ébria, escandalosa, louca e histérica que sente prazer em desafiar o marido e busca insatisfeita novos amores. No auge de sua agonia, ele cai por terra e ao levantar a cabeça, nota que nuvens negras cercam a Lua e afirma que “asas da morte estão cercando este palácio”. Herodíades, bêbada, ri como uma louca da desgraça do marido. Este, como que querendo decifrar a esposa, lhe pergunta o que vê quando olha para a Lua. Herodíades para e lança seu olhar para o astro. Faz-se silêncio. E ela afirma: “a Lua é a Lua!” Seca e direta. Louca, porém calculada. Talvez tema revelar algo de si ao marido. E ordena que tragam mais vinho. Estes dois personagens nos causam repúdio, embora possam descambar com facilidade para o cômico, não é um riso fácil, é um riso cáustico de saturação que se torna mais desprezível à medida que são mais reconhecíveis, como ocorre quando se assiste à ópera de Strauss.

Herodes então pede para Salomé dançar para ele, e tudo o que ela quiser lhe será atendido. Salomé dança e ao final de seu bailado ela está inteiramente nua. Como recompensa, pede a cabeça do profeta em uma bandeja de prata. E Herodes se desespera, porém havia jurado que tudo daria à princesinha e satisfaz o desejo da jovem.

Ao segurar a cabeça de João, Salomé em êxtase exclama “eu disse que iria beijar tua boca, João! Eu disse! Tu estás morto, e o mistério do amor é maior que o mistério da morte”. E ocorre a mais insidiosa transfiguração do palco quando Salomé beija a boca morta de João. Herodes está atônito e grita para que a Lua se esconda, porque coisas terríveis irão acontecer, e ordena para os guardas esconderem a mulher, e enquanto Salomé abraça e beija a cabeça do profeta, Herodes ordena: “matem a mulher!”

Desejo, realização, morte e eternidade.

Em destaque, Salomé por Aubrey Beardsley (1872-1898).